quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A ROSA






Sempre fui vulcão & mar sem salmo
água benta & bala de canhão
coquetel molotov & beijo de abismo
olho ametista & pesadelo de plutão

Sempre fui incesto & transcendência
nuvem-kamikaze & guerrilheiro provençal
dinamite-split & caos de quintessência
libriano Romeu & incendiário Parsifal

Em mim a água se fez fogo de luxúria
A terra transfigurou-se em vendaval
O ar fugiu pros quintos da Manchúria
e o éter desembarcou no diet-Caos

Sempre fui colibri & cataclismo
eneagrama do enigma & cacos de Berlim
O 5o. Cavaleiro do Eclipse
o espinho espetando a rosa em mim



Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 236


terça-feira, 22 de outubro de 2013

O SENTIDO




qual o sentido
de se estar vivo:
viver os cinco sentidos?
acender a luz do espírito?
reedificar o paraíso?
tornar-se do todo amigo?
ser lírio ou narciso?


por que quando o sentido
 a face vem mostrar
esconde-se o não sentido
para o sem sentido brilhar?


o sentido
é paisagem que aí está?
o não sentido
é passagem que se abrirá?
o sem sentido
é viagem sem lugar?


ad finitum
é o universo:
mysterium
tremendum
mas do precipício
seremos salvos
quando a essência
reencontrar o princípio


por enquanto da vida
 só captamos os ruídos
mas o verdadeiro sentido
será definitivo


quando o que clama
desde jerusalém
irromper-nos à alma
com o seu amém!




Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 572


A CAVERNA DE PLUTÃO



1
Todos têm direito
ao arco-íris:
apenas os fortes
os loucos e os profundos
são os escolhidos
para ler a escuridão

2
Jamais ergas pontes levadiças
para não ouvir o coração
Entroncamento ferroviário fábrica de enigmas
o inimigo é quem convida ao silêncio
Por que levantar rutilantes escudos
contra a invasão do sol vermelho?
Pensamentos são espadas Abrem clarões
Penetra no reino dos ruídos:
lá encontrarás as múltiplas vozes
que celebrarão o êxtase da agonia
Tua única glória é estar vivo
Onde o silêncio pasta — camisa-de-força —
encontrarás a ausência do conflito
 desnecessário à angústia da existência
Ferve o sangue para a revolta:
tempera-o no fogo das fermentações
Não terás paz É verdade Mas o que é essa paz
senão a cessação do pulsar da vida
o cemitério do desejo
o deserto de toda recordação?
É na azáfama diária
na conferência do caos e do sublime
 no intervalo do beijo e do aniquilamento
que a tua carne beliscará a vida
Convoca os deuses ao teu leito
Serve-lhes absinto A verdade é luto
Nessa hora agônica Deus
 descansará dos frutos
E a solidão a grande solidão
é a única invenção da criação

  
3
A Morte — não o discurso sobre Ela
a Óbvia a Escaldante a Extasiada
que nos leva rútilos ao parque dos ossos
Falo das pequenas excelências
melhor dizer ilustríssimas as carentes
que sucateiam nossas carnes pânicas
e exibem a coleção de fracassos
na passarela das mais puras convicções
Elas as minúsculas as preparatórias
que carimbam os passaportes de viagem
e nos remetem à sagração do abismo
para o jogo olímpico do gozo e da fúria
Bem-vindas sois dançarinas flamencas
ao tédio de toda ansiedade
Girai os tendões de vossos pés
sobre os cadáveres da falsa bondade
e dançai ao som das flautas-tíbias
onde a flor expectora a eternidade
Arrancai os olhos ao pedestal da força
celebrando o fracasso da perfeição
Consegues sobreviver à Grande-Morte
vivendo a morte da transformação?
Dissipa o treinamento do lamento
e enfrenta face a face a desolação
Só quando carregares o cadáver
de tuas falsas esperanças
terás te libertado da ilusão
Rouba ao céu um buquê de estrelas
segura a mão do imprevisível
e abandona a bagagem na estação
Ainda que flores de insânia
desabem da casa de infância
segue adiante Eis o grande mar
Só novo pecado nos renascerá


4
Nenhuma novidade
encontrarás na luz
A pupila gasta o sonho
na gilete do sonhado
A não ser que desças
a sete palmos de noite
 miragens te propiciarão
o pesadelo do imaginado
Toda luz é ocultação
O que te cega
é o excesso de claridade


5
Senhores recorrei aos arcanos:
 ensino-vos a abrir oceanos
 Lançai fora todas as chaves
e girai a que abre pra dentro
Eis a Nota-Sol o Em-Si-Lá
a grande chave o Eu-Centro
Adestrai de presto a lírica:
a vida real é mais criativa
que a ficção científica
Riscai ao redor um círculo mágico
e evocai o poder do trágico
Sou Oroboro o Rei-de-Ouro
que fechou o círculo do fogo:
abriu o segredo da Flor de Ouro
e tornou-se o Sol vindouro
girando rabo e boca ao tesouro
as larvas cozinhando o ovo
Sou o Misantropo e o Minotauro
o Dinossauro e o Pitecantropo-Outro
o Centauro-Pavão o Galo-Ígneo
que purifica a luz do olho
dinamitando o Bezerro de Ouro
Sou o que recicla os mitos
fecunda os astros e floresce a flor no lixo
 preparando-te para a luz do Espírito
 sem o qual serás submisso
Por renegares o teu negro ego
vagarás 40 anos no deserto
 Teu sol deixará de ser cego
então irromperá o fogo amarelo
Enquanto não aceitares tua escuridão
 o mar não se abrirá ao coração
Até lá treina tornar vinho em água
 abracadabradacabradacabracadabra


6
Ah Tirésias Tirésias
 Empresta óculos-laser aos sensíveis
Protege-os das insolações infernais
e da corrupção da lei astral
Ai os sensíveis os sensíveis os sensíveis
Fácil é identificá-los faróis baixos
na fila de pão doce das padarias
A psicoterapia deles é o olho derramado
Feridos oferecem a outra face
até o massacre total
Delicados instruem a família
a enviarem santinhos na missa de 7º dia
Por carregarem um coração puro
são os mais castigados por Deus


7
Somos aquilo que morremos
Sê teu próprio antídoto e veneno
Abandona o roteiro do animal ferido
rumo ao último repouso
Jamais te tornes a lata de lixo
de tuas ultrapassadas crenças
As muralhas das costelas pedem destruição
mas o templo ressurge ao terceiro dia
O que vulgarmente chamas livre arbítrio
é a terceira dimensão da solidão
Tudo o que não flui pleno
retorna de mais ou menos
Vive a plenitude da realidade
e abandonarás o resto pela metade
O buraco negro da existência
é a luta do sonegar e partilhar da luz
Como trazer fogo à consciência
senão com a fricção da experiência?
A cada morte sobes mais alto
buscando oxigênio na raiz
Estranhos são os salões de beleza
do renascimento O mistério da morte
é o perigo de tornar-nos mais belos


8
Todos nós fracassamos
Mártires e virgens fracassamos
Anjos e demônios fracassamos
Revolucionários e revoltados
Mendigos burgueses potestades
Fracassamos Fracassamos Fracassamos
Menos você sexo: flor do desejo
Prima-dona da agonia
Angústia do divino Êxtase do caos


9
Rasga dogmas profecias livros:
tudo precisa ser reescrito
A vida é pessoal e intransferível
Deus: uma aventura excepcional
Cada experiência — uma ciência
Da escuridão — vem sempre o clarão
 Do arco do triunfo do peito
lança à verdade a seta mais funda: a emoção
 Imagina se igual ao movimento do mar
a vida estiver no devido lugar?
Da tensão entre arbítrio e destino
está o ponto de transmutação
Quem sabe se a súbita revolução
é aceitar pessoas e coisas como são?
Jamais interceptar o vir-a-ser
do ser plasmado a acontecer
Aclara o relâmpago do impulso
e corta os pulsos da dissipação!
Só algo resta a ser transmutado:
a ilusão da iluminação


10
Vem noite
com o teu agasalho de estrelas
o teu vestido de mulher morena
o teu perfume de aloés e noz-moscada
Restabelece o mistério dos deuses
Resfria a minha pele corrompida
Lava a minha dor eterna
Expulsa o invasor diurno
Cura o coração incendiário
Sobrevive meu olhos ao holocausto
das ulcerações do Sol


11
Quebradas as tábuas dos princípios
 vivemos sob o signo do precipício
Só o amor explode o inferno
faz em cinzas a discórdia
e veste a temporada do eterno
Na proporção da profundidade da cova
ascenderás à vida nova
Aceita a morte Busca o abraço da vida
A morte transforma a vida
mas a vida despacha a escuridão
A morte pesa tonéis A vida
sempre é luz no início e fim do túnel
Jamais a constelação do Dragão
ofuscará os carneiros do Sol
Por que dançaste às sombras dos abismos
é necessário polir o corpo nas estrelas
Do veneno transmutado ao escorpião
esculpirás as garras do leão
que plasmará na águia o coração
Conclusos estão os trabalhos de parto
 da oitava superior de Marte À postos
Sonâmbulas as carcaças dos dinossauros
ressurgem o ouro azul das utopias
Não há patos na Patagônia
tarzãs na Tanzânia babéis em Babilônia
A Morte é insônia Convoca
Vênus Netuno e Urano E sonha


12
Nada há mais a fazer
Agora é ser





Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 539


A QUINTA CHAGA




Aos amigos Leonel Araújo Lima, Zeca Belo e Alberico Carneiro, companheiros da flor-de-lis metálica no coração



Eis o caminho das espadas
que o Mar Vermelho abençoou
na constelação das coronárias
Taça de vinho tinto derramado
 na toalha branca do sacrário
sou a ceia devorando ervas amargas


Víscera sagrada estressado músculo
ovelha imolada templo do crepúsculo
sol de Hiroshima bíblia de Abel
palco da chacina açougue do céu
bala de canhão dos doze apóstolos
 UTI da paixão de todos os sós


Morrer pela cruz ou pela espada?
Arrancaria do peito a bomba-relógio
e contra a turba arremessaria a granada?
Metralhado ostentaria estrelado
os buracos do céu em adoração
guerrilheiro da magia sagrada?


Ave quinta chaga de Cristo:
o serafim científico executou o rito
de angioplástico gozo: projétil metálico
Ante-sala da iniciação — stent no coração —
fuso a fuso parafuso a parafuso
penetraremos no paraíso?


Buraco de agulha — eis a porta estreita
da artéria — chave da compaixão
Por esse buraco passaram e passarão
Franciscos e Pios o vício e o perdão
Nos canais interditados das veias
navegam uníssonos o mau e o bom ladrão

Vede os estigmatizados da razão
 e o mistério decepado de asas
Ninguém transformará em devoção
 os estigmas dos endurecidos corações
clamando onipresentes à rigidez do músculo:
— “afastai a pedra do sepulcro!”


Venerado com catéteres e adrenalina
 o corpo cambaleia nas estações
Ora a nicotina: “ópio do povo /
 vício do todo / cinzas de maria”
A serpente com as presas de metal
 envenena-me com a seta do aguilhão


Na caverna do peito — fenda
da rocha — o poço da paixão
3 da tarde: as angustiadas badaladas
da máquina gritando manutenção
Arame farpado: a chaga da terra
a natureza submetida à corrupção


Ferido por minhas próprias transgressões
 dilacerado pelos meus pecados
minhas feridas jamais me curarão:
pingue nelas o sangue do crucificado
Quem reerguerá esse templo de paixão
consumido em desejos e desolação?


Consagrei o corpo em flor
às obras em suor do amor:
mão direita — realeza
mão esquerda — beleza
pé direito — profundidade
pé esquerdo — busca da verdade


Mas o coração milagre da criação
sofre o abalo da gravitação
a queda da eterna árvore
Entre o elástico e o esclerótico
lançou-me o peito a um voo egoico
— estreito céu — fatídica ave

Extenuado em vasoconstrição
 quem reconciliará meu coração
com a senda do amor e compaixão?
o crucificado sursum corda
alargará os afluentes envenenados
jorrando sangue e água da misericórdia


Ser conduzido pela claridade
aprender com a fonte a sobriedade
como o lírio curvar-se à castidade
eis minha precária humanidade:
a água condutora de eletricidade
fogo espalhou à chama da vaidade


Celebrei-te ó fragmento
 sob as colunas do templo
Prisioneiro do tempo e vento
 ergui-te fáustico monumento
Hoje ardendo em fragmentação
 aspiro ao sol da união


Desta sexta-feira sou o crucificado
clamando ao meu anjo os seus cuidados
Coração novo Caminho novo
Cântico novo Mundo novo
Complete o céu a grande obra
de quem na vida suportou ígneas provas


Do amor a via sacra negativa
seja transmutada a chaga em água viva
Pai glorifica os meus fracassos:
no peito habite o sagrado pássaro
Ó mangueiras do Sítio do Físico:
sobre vós derramo o meu espírito


OFERTÓRIO

Quando fores a São Luís aquece o teu coração:
enverga a jaqueta gris e leva a flor entre as mãos
Indaga à rua do Giz e aos sabiás de plantão
pela alegre codorniz que morreu de solidão
Chama um menino feliz do Coroado ou Pespontão
pra abençoar a cicatriz e dar asas à rejeição
Quando fores a São Luís ajoelha-te em oração:
encontrarás na Matriz meu corpo de ressurreição!




Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 550