segunda-feira, 30 de junho de 2014

TELEMO




minha felicidade
viver nos extremos
nem mais nem menos
dinamitar os dois lados
viver além tempo-espaço


ôntico trabalho: ser turiferário
atravessar a cauda do dragão
memória kármica em leão
até a cabeça do dragão
onde fluem as centelhas de aquário


no fio da navalha
ou nos buracos da agulha
aprendi segredos: sol-lua:
enqto. o cérebro julga e pensa
o coração não se manifesta


potência da busca
montanha russa
carbono e culpa
meninges em alarme
efeito estufa


após degustar todos os sabores
e neutralizar o círculo dos humores
aprendi o segredo do pós-leve:
arquivei o estilo kamikaze
tornou-se-me a vida gessy-lever


enfim o caminho do meio 
de um poeta
que comeu o prato cheio
devorando pelas partes
o inteiro





Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 205

sexta-feira, 27 de junho de 2014

O PALHAÇO (O Homem que Ri)




ó alegria
vingança do ridículo
salva os palhaços
do circo


ó alegria
kamikaze do insólito
extermina a agonia
do plástico


vem tragicômica
nux vomica
gargalha a risada
tragédia da lágrima


fecha o siso
genocídio do riso
libera o opio
fetiche dos trópicos


embora detrás
da máscara de carne
um orfanato ambulante
cante no palhaço


o santo canonizado
no antiácido
protege-o do humor negro
do fracasso


ó alegria
brincas sem dó e piedade
mas és a melhor fantasia
na careta da humanidade







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 473


quarta-feira, 25 de junho de 2014

PONTOS DE ACUPUNTURA




aqui onde passa o meridiano do coração
 outrora foi o Mar da China
5.000 arqueiros de armaduras reluzentes como o sol
lançavam incendiárias flechas atonais de suas flautas
para saudar o equinócio de pérolas da Dinastia T’ang
mas o crisântemo desarmonizou-se com a nota kung
 e os lótus se afogaram na décima primeira lua



descíamos a vau para as montanhas tibetanas de Kung Lu
onde o céu e a terra engendram as dez mil coisas
rompendo o Portão do Inferno e o Portão da Nuvem
 para a conferência anual das quatro estações
em que os ancestrais se reúnem próximo
 à cortina do bambu de seda
e o verão descansa a cabeça no travesseiro de jade
para ouvir a sutra da palavra tranquila



transcorria o Ano da Serpente e era o Hexagrama 58
movimento e repouso em algum lugar do vazio
o Grande Yang e o Pequeno Yin convocaram
para o sacrifício imperial
as artemísias em fogo e os espinhos de metal
 para restabelecer o fluxo das águas na energia da vida
e o Rio Amarelo tornou a fluir nas correntezas das veias
como um peixe que nadasse livre entre musgos e líquenes






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 286



terça-feira, 24 de junho de 2014

A OBRA EM CINZA (O Iluminado)




És o maior iluminado que conheço
 na iniciação dos segredos mais ocultos
Aspirar tua presença é inventar a chave
que penetra os mistérios do êxtase mais profundo
 Todos os dias um bilhão de fiéis presta-Te culto
Te invocam em Bombaim na Lituânia e no Chipre
nos cafés de Buenos Aires ou no horário nobre da CNN
És céu e inferno prisão e libertação
vida e morte consciência e inconsciência
e estás em Ti mesmo como o arcano da liberdade
 na dimensão recôndita de nossa revelação
És a chama plúmbea da sabedoria
que penetras o corpo físico mental e emocional
 protegido pela magia dos elementos fogo e ar
 No espaço entre os dedos e os lábios
exercitas tua sublime alquimia
que converte ímpios em puros e tolos em sábios
 Tuas espirais de fumaça evocam os anéis de Saturno
 onde sentamos na escadaria para meditar
Buda vegetal lança-nos a um incensado nirvana
 com tua fragrância de alcatrão e nicotina
Sou o teu discípulo mais incandescente
derramando luz e muco pelo sistema solar
Reverencio-Te como a um deus pagão:
sou o raio cinza do teu ensinamento
No juízo final os críticos divinos dirão:
toda a sua obra recebeu-lhe o gentil alento








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol, 1, p. 284



sexta-feira, 20 de junho de 2014

BALADA NEGRA




1
Anjo decaído meu
esplendoroso príncipe de alcatraz
melhor seria não te conhecer pessoalmente
e relegar-te à escuridão do jardim interno
Mas se me escondo e fecho a porta
fazes um louco pandemônio
retornas com o teu séquito de angústias
ateias fogo no tapete
afugentas os pássaros da garganta
e torno-me um polichinelo em tuas mãos


E te vejo em todos os lugares
no semáforo das esquinas
nos anúncios das vitrines
nos letreiros das boutiques
na tábua de frios dos restaurantes
Até nas tábuas da lei
te introduzes zombeteiro
nas páginas do missal romano


Anjo decaído meu
inevitável te conhecer: 
portanto (o que fazer?)
muito prazer


Dentro de mim borbulhas no sangue
celebrando a minha parte corrompida
e subtrais os rios do Éden
teus combustíveis de alumínio líquido



2
Quando eu captava o mundo
pela impressão colorida dos 5 sentidos
estavas comigo
Quando celebrava os signos da matéria
estavas comigo
Quando o intelecto se rebelava na consciência
estavas comigo
formando rica matéria-prima
para os confessionários das igrejas
e os consultórios dos psicanalistas


Cativas-me com teu cativeiro
tua energia de alta tensão
exaltas-me os sentidos
para a posse e a paixão



3
Na divina comédia da vida
és o ator mais procurado
mesmo quando escondes o rabo
e mostras sob as gambiarras acesas
a tua face de raro esplendor


Mestre de negro humor
saltimbanco de ópera bufa
Príncipe dos deserdados
tua maior glória é esta:
ensinar que na fraqueza do divino
está a ascensão do humano


Vê: todo o território
até onde o olhar alcança é teu:
a paisagem que não é de Deus
Não foi a ti que nos confiou
a piedade divina
Como então zelas e proteges
guardas e iluminas?



4
No reflexo do espelho
vejo que os desejos de apropriar possuir seduzir
são as chaves do teu reino
e nele gravito incandescente
(paraquedas chegando ao chão)
por mais que esfregue a pele da alma
e lave a consciência com sabão


Ah teu paraíso é feito
das delícias do humano
dos escombros do divino
do gozo do profano
de excremento dos anjos
das impurezas do branco


e nele ficarás até o final dos tempos
rondando os templos
como o cão de guarda
defende a casa


essa é a receita da serra:
a contrapartida da terra!



5
Anjo decaído meu
porta do inferno
sol da eletricidade
estrela do egoísmo
arco-íris fendido
arco da lamentação
luz dos orgulhosos
seta do desânimo


agora que te conheço
renuncio às tuas obras
agora que me conheço
renuncio às minhas cobras
indigesto foi comer o pudim de sobras
doloroso dizer: mas valeu



6
Do inferno e sua alfaiataria
não me visto mais
Agora visto a roupa do eterno
e a sua profunda paz








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 373


quarta-feira, 18 de junho de 2014

O ROSÁRIO


                                                                                                           aos cantores liricos e amigos 
                                                                                                                        Carol e Victor Vieira


o rosário é uma manopla
máquina de triturar
a queixos infiéis soca
e o chão em logo beijar


o rosário é o grão-chicote
vergastando o calcanhar
mil e quinhentos mascates
do templo vai expulsar


o rosário é uma rede
repatriando céu e mar
pra que os peixes com sede
a todos venham saciar


o rosário é uma árvore
enlouquecida de amar
atraindo à sua nave
o homem o sol e a lua


o rosário é um trem de almas
ajoelhado nos trilhos
percorrendo em angústia e calma
a salvação dos seus filhos


o rosário é um terrorista
recrutado no shabat
treinando em fé e alegria
pro coração resgatar


o rosário é um parabélum
acendendo a luz no eterno
é a canção do violoncelo
lavando o fogo do inferno


é punhal e fina adaga
de salomônico fio
é molotov e granada
lançando aos ares o exílio


é também laço e corda
ligando o poente ao nascente
e nos círculos em cruz borda
a ponte entre o ser e o ente






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol.2, p. 526


terça-feira, 17 de junho de 2014

CARTA DO INICIADO FENDIDO AO MEIO





1
Quando eu era materialista
amava a lua na escuridão do céu
Depois me tornei espiritualista
e quis ser o sol da meia-noite
Agora que não sou mais
espiritualista nem materialista
cigarra e formiga cantam juntas
no aurorescer e alvorecer
Não sei mais o que eu sou Eu sou


Todos estão rigorosamente certos
Todos estão exclusivamente errados
Não há nada a fazer
Não há partido a tomar


Se o visível procede do invisível
— seria correto dizer —
que o material leva ao espiritual?
Sol e lua brilham para todos:
muita treva conduz à claridade
e excesso de luz pode cegar
Portanto quem está aqui pode estar lá
Tudo que é sólido desmancha no ar
Não sei mais o que sou Eu sou


Na verdade — quem não busca o céu
por mala direta ou oblíquo véu?
As estrelas e as lojas de departamentos
os homens de negócio e o asceta tibetano
todos crescem e multiplicam-se como nuvens
apenas para cumprir a obra de Deus

Portanto quando perguntam:
materialista ou espiritualista?
Não sei o que eu sou Eu sou




2
Quem não vê
(conectando a luz da alma no fio da visão)
que o ébrio procura na embriaguez
dissolver a sua dor em Deus?


e o intelectual ensimesmado
busca a sabedoria de Deus?


e o neurótico desiludido
apenas o amor de Deus?


e o capitalista convicto
o poder de Deus?


e a prostituta
que se entrega por dinheiro aos homens
 anseia (sem perceber)
como entregar a alma nua e pura ao Pai?


Quem julgará o certo e o errado
com sabedoria e toda a ciência
 se o bem e o mal
são apenas estados de consciência?





3

Antigamente eu tinha muita
 culpa por viver embriagado no  mundo
Agora que me embriago de Deus
e recuso o cálice do mundo
vejo que permaneço ébrio
e o vinho exala forte em minha alma
Ontem estava certo
Hoje estou certo também
Não há nada a fazer
Não há nenhum céu a conquistar
Nenhuma cerejeira vai florescer
Nenhum salvador vai chegar
Só sei que a cada dia menos sei
Só sei que a cada dia menos sou

 Não sei mais o que sou Eu sou







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 345


segunda-feira, 16 de junho de 2014

DOGMA DO AZUL E BRANCO




Os especialistas
nunca entenderão
o multimistério
da Imaculada Conceição


Deter-se-ão na investigação microscópica
da membrana filosófica
Despacharão expedições a Nazaré
pra colher amostras de sangue
Estudarão o limão dos seios
e a meia-laranja dos quadris
Dissecarão (como flor de plástico)
o Amor e seus derivados


Depois escreverão
milhares de teses
(mais que as estrelas do céu)
demonstrando
ci-en-ti-fi-ca-men-te
que a fé veste
mas a ciência despe
e (portanto) a carne é fraca
e ovelha não jura pra capim


Um dedo apontará a lua
e mostrará a verdade nua:
alguns verão o dedo
outros a lua!


Enquanto isso toda frajola
vestida de azul e branco
arco-íris nos cabelos
sol e lua sob os pés descalços
a Virgem leva seu menino ao parque
pra passear com os rinocerontes






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 556

sexta-feira, 13 de junho de 2014

DISCURSO DO INTELECTUAL SOBRE O AMOR



                                                                                                                               a Roland Barthes



O amor é para ser lido
num dia de domingo
(ou então) segunda-feira
Rostos e cabelos
não são passagens mas hieróglifos
Tempos e circunstâncias
são indícios
Bocas e línguas
são solstícios



O amor é para ser vivido
na branca cama do linossigno
como uma página aberta
e/ou desejo repleto de possibilidades
Dicionário de probabilidades
no triângulo das bermudas
uma perna distante
é uma perna perdida



O amor é para ser consumido
como uma laranja grega
ou um sol tombado
cheio de gemas e pantáculos
onde se estuda o mel dos anacoretas
no mar azul das molhadas hélades
e o efeito estufa do canto das sereias
nos gatos aprisionados nos navios



(Quem não souber ler signos
e dissecá-los sem perplexidade
jamais compreenderá profundamente
o significante do significado do amor:
mensagem interceptada no dilúvio
colar de conchas roubado à praia
borboleta de ouro batendo asas
no sonho acordado de Salomão)



O amor é para ser amado
como lua de mel da especialidade
viagem de férias da realidade
carta de colagens dos sentidos essenciais
Fragmentos de um discurso amoroso
são litanias de deuses sem ascenso
ainda que aos cépticos a musa decadente:
_ "Ai amor eu não te amo mais!"









Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 351