quinta-feira, 31 de julho de 2014

V (O FILHO PRÓDIGO: Um poema de Luz e Sombra)



Pai
pelo sopro
pelo horto
obrigado


pelos planetas em rotação
pelos ratos do porão
obrigado


pelo amor envergonhado
pelo pão compartilhado
obrigado


pelo vazio ontológico
pelo osso filosófico
obrigado


pelas horas de alegria
misturadas à agonia
obrigado


por voar de asas cortadas
por ter incendiado a casa
obrigado


pelos ciclos de morte
e exposição aos ventos
gerando-me renascimentos
obrigado


pelo jardim e pela torre
pelos pântanos e flores
obrigado


pela beleza sonhada
pela biografia rasurada
obrigado


pelo preço da encarnação
pelo peso da evolução
obrigado


pelo que foi impronunciado
abafado e não gerado
obrigado


pela totalidade
moeda do erro e verdade
muito obrigado







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2. p. 401 



quarta-feira, 30 de julho de 2014

A GRAVIDADE




cair cair
sem paraquedas
(mistério de sete quedas)
                       despencar
da árvore cósmica
(como um relâmpago)
estrela sapoti romã
objeto não identificado
violando o espaço aéreo
de guarás e urubus
(urinando azul
pelas galáxias)
anjo rebelado
q esgotou o prazo
                de validade
e mergulha (com
a bengala de carlitos)
vertiginosamente
sobre os vitrais
              das catedrais
(travis descendo
aos infernos
de nastassia kinsky:
paris/texas)
o abismo no corpo
o vento no rosto
o inverno nos ossos
ao fundo do poço
do grande vazio
onde rompem-se os véus


o fundo do nada
nos braços de Deus







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 307



sexta-feira, 25 de julho de 2014

O LIVRO DO ÊXODO




     Devorar/ dentes como punhais/ a que nos gestou e pariu/ o corpo branco perfumado de ervas/ assado em brasas e folhas de bananeira/ Devorar em ritos amorosos/ o corpo da mama/ pedaço por pedaço/ reivindicar os seios/ os seios/ os seios/ o direito de primogenitura/ não só pelo prazer de incorporar o poder/ a transmissão da energia/ mas fortalecer o ser/ o ser/ o ser/ e a alegria/

     Devorar vorazmente a carne/ mais que a carne/ o arco-íris da tarde em chamas do corpo de Míriam/ (ouvindo os tambores da ilha)/ banquetear-se do gozo/ gosto/ dos que a amaram/ o sabor que reclama saber/ da matriarca de nossa lã/ nada deixar à terra e às formigas/ sequer o vulto da clara pele de papel-bíblia/ (enqto. os tambores despedem-se da noite da ilha)

     Devorar (como Dvorák devorou as pautas tíbias)/ todo corpo/ horto de Míriam/ na fogueira santa da nossa antropofagia/ daquela que nos engordou para a cerimônia do adeus/ e suas primícias/ Devorando-a/ fomos dev-orados/ descobrindo que nossa fome não era de comida/ mas de amor e vida/ e nos libertamos da carne envenenada/ reiniciando a jornada/ renunciando a luta contra a vida/

      Devorar a que foi a ovelha sacrificial/ p/ expiação dos karmas familiares/ mastigada até o tutano pelos nossos temores/ assada no azeite de nossa angústia corrosiva/ E quando anoiteceu/ anoitecemos/ e quando adoeceu/ fomos curados/ e conduzidos ao cordeiro imolado/ que clama há séculos/ há séculos/ há séculos/ pela ressurreição da carne



A que era/
A que é/
e A que será/
A Shekinah/
invocamo-la/
A testemunhar







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 496


quinta-feira, 24 de julho de 2014

A ESCRIVANINHA



Jamais possuí escrivaninhas
p/ celebrar generosas utopias
Sequer mesinhas com florzinhas
p/ compor frágeis litanias
A linguagem gloriosa e guerrilheira
venceu a fotografia estática
mas filiou-se à dinâmica da vida
em que a indignação é movimento
Na sala de estar almocei sonhos
nunca a refeição completa
Em cooper lírico-energético
escrevi em bancas de jornais
filas de banco assentos de praça
mesas de restaurantes muros descascados
salas de musculação coxas entreabertas
Meus poemas converteram-se em tatuagens
aleivosias decalques pichações
Deitado na rede cabeça inversa
verso na cabeça o que sou?
apenas fragmento de poema
Meio-Padmásana - eis a posição ideal:
pano de fundo - a colcha da cama
Minhas escrivaninhas ambulantes
só o vento as registrará:
nenhum museu ostentará
o móvel antigo talvez rococó
invisível objeto de estimação
com a moldada cadeira por companhia
onde a ausente coluna cervical
vergou-se ao peso da poesia






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 226


quarta-feira, 23 de julho de 2014

DETALHES DA CAPELA SISTINA



1
nada
a te oferecer


Senhor
a não ser


(inútil
contraste!)


um coração 
endurecido


o peito
em chamas


e o corpo
em brasa




2
mas te oferto
esse sol de desconforto


(precário alimento
da minha provisoriedade)


como lenha
para tua fogueira


ou azeite
para tua lâmpada


pra acender círios
aos que estão no escuro


e iluminar a glória
da tua eternidade






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 404



segunda-feira, 21 de julho de 2014

O (O FILHO PRÓDIGO:Um Poema de Luz e Sombra)



Após o pânico
das caranguejeiras
borboletas azuis 
voam na clareira


O que fora elaborado
no ritmo agônico das horas
irrompe súbito no afogado
no fundo do poço da memória
nas mãos trêmulas do menino
cavando a escuridão
pra não causar o mau destino
nem ser o algoz de seu irmão
fogos-fátuos do passado
campos de concentração
em que adultos desgovernados
desmontavam os seus brinquedos
pra uso e reutilização
absolutamente por maldade
mas por não haver bondade
na guerra em seus corações


Toda a íntima odisseia
fragmentos e mitos
lições do sinistro
do homem em desgraça
perante sua raça:
pétalas de suor
raios de misericórdia
- ritos de passagem
de trágica viagem -
pra quebrar-me o rigor
e manifestar o amor
em meu mundo interior


Só o amor vence o ódio
mas se o amor não o vencer
o ódio torna a florescer
com seus megatons de sódio


Só declarando impotência
ante qualquer violência
lava o homem a consciência
despedindo a culpa imensa


No estranho mundo do ter
vale a metade do apreço
no universo do ser
paga-se em dobro o preço


Criei a mim - vestígios que sabia
filho do abismo e da mão tateante
Sou os escombros e a cumeeira
o que arde em baixo é sol de feira


Ó vocação do fogo
queimar e perecer
ó vocação da água:
morrer e renascer


Meu trabalho é fazer
das folhas secas - verdes
dos sucos - frutos
do luto - muco
descobrir no precipício
o divino
após o demoníaco
e sobrevivente do lixo
hastear o solstício


Meu ofício: realizar
o percurso da água
navegar o coração
(como um rio)
à fonte da lágrima
o ouro da flor:


a água gosta
de lugares baixos
a ferida dos homens
e a sua dor


porque nada passa
nem o ferro de engomar
que as roupas traça
nem o vinco do passado
que o mar escalpa
nem o sol do Saara
que os homens assa


Só o que morre
sobrevive







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 390



quinta-feira, 17 de julho de 2014

UM POUCO DO INFERNO DE DANTE NO PARAÍSO DE MILTON




ah! sejamos incendiários
docemente incendiários
como o bofete de maiakovski
na face esquerda do czar


óleo diesel álcool 40 crepúsculo argelino
bomba h fissão nuclear fósforo pinheiro
ou coquetel molotov com chantilly
tudo é pavio para altear a chama


incendiemos a esquerda e a direita
incendiemos o centro o alto e o dentro
queime o fogo o Capitólio e as nuvens
e a face de Deus ganhe um belo bronzeado


mas queimemos tudo com charme
para que não haja alarde:
e a piolhenta barba do velho marx
crepite como vestido de joana d’arc


queimemos os democratas e os socialistas
queimemos os surrealistas e os porcos chauvinistas
queimemos os Vedas a Bíblia e o Alcorão
a página da História vire tocha olímpica


seja um espetáculo pirotécnico
de causar inveja a Nero:
certo de que o último a sucumbir
não apagará o fogo em seu xixi


ah! sejamos incendiários
docemente incendiários
como o bofete de Maiakovski
na face esquerda do czar


o fogo queime o todo o tudo e o antigo
e faça brotar da casca do (n)ovo
e quem sabe então nasçamos rubros
mais rubros que a revolução de outubro




Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 01, p. 280

terça-feira, 15 de julho de 2014

O ENCONTRO DE ULISSES E TELÊMACO




          Pode-se dizer que a obra de Luís Augusto Cassas - dentre suas direções multifárias e abertas - é atravessada por uma sentida telemaquia. A busca da origem. Da ilha. E da casa. Como quem sofre uma nostalgia orientada para o passado e para o futuro.

          Tudo isso pode ser apontado, por exemplo, a partir do livro Deus Mix, onde a busca não passa de uma física da confluência, das origens tantas que ferem como flechas pontiagudas homens e deuses.
          
          Mas é somente nesse doloroso e belo O Filho Pródigo, que se realiza o encontro de Ulisses e Telêmaco.

          Assim, pois, como dizer aqui o tamanho de um regresso, voltado para uma nova Ítaca, sob os auspícios de uma cosmologia da parte e do Todo?

          O poema avança por campos gerais e sonda a pluralidade de saídas e significados. O eu-lírico representa todas as partes, sem distinguir réu de juiz, defesa de acusação. O livro não se restringe a apontar para um trivial  j'accuse. Cassas é um poeta forte, porque possui um desenho de um cosmos, que sabe e persegue, estuda e medita. E, assim, portanto, conhece de modo mais alto as escalas de grandeza que nos regem, desde o DNA ao Empíreo, do sonho alquímico ao teatro da ciência - as formas todas que compõem o legado da nossa miséria (e sorte).

          A figura do pai emerge, portanto, de uma compreensão certamente dolorosa, sofrida - quanto não lhe custou escrever este livro? - quase devastadora, e, apesar ou por causa disso, estabelecida num plano de amor, que não move apenas o sol e as demais estrelas, mas que inaugura a via imperscrutável do perdão. 

          Mas tudo isso, a partir de uma visão de mundo, tanto mais aberta, quanto mais solidária, em que a rede de fenômenos se confunde com os arcanos e essências que o poeta sabe ler no céu, na pedra e no coração.

          Livro de rara beleza, de pura e clara redenção. O fim de uma viagem, que encontrou não apenas um porto, mas uma demanda de beleza e reintegração. 





                                                                                                                Marco Lucchesi







Marco Americo Lucchesi    (Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1963) é um poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras (desde 2011) e também da Accademia Lucchese delle Scienze, Lettere e Arti. Graduado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é mestre e doutor em literatura, pela UFRJ, e realizou pesquisa de pós-doutorado em filosofiaa da renascença na Universidade de Colônia, na Alemanha.


segunda-feira, 14 de julho de 2014

VAN GOGH NAS PÁGINAS AMARELAS

pintura de Vincent Van Gogh



Porque os homens preferem as louras
eu prefiro os amarelos
Fui à feira e comprei
um sol novo pro chinelo


Papagaios bananas girassóis
derressóis submarinos yellow
Porque os homens preferem as louras
eu prefiro os amarelos


Em que biombo se escondeu
o arrozal de Boticelli?
Que águas Mao Tsé Tung bebeu
pra ficar tão caramelo?


Veja você o susto que me deu
tomando chá de cogumelos
Porque os homens preferem as louras
eu prefiro os amarelos


Porque eu quero que a noite
se aqueça no marshmallow
quero que tudo o mais
vá pras quintas do Otello


Fui no vídeo e me rifei
pelos filmes do Costello
Porque os homens preferem as louras
eu prefiro os amarelos






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 212


quinta-feira, 10 de julho de 2014

CONVERSA COM O AMIGO



no longo diálogo
sobre a vida
foste
o verbo preferido


a liturgia das horas
as mensagens cósmicas
(a troca de guarda
dos anjos na alvorada)
as vigílias intermináveis
do joio e o trigo


antes que o vento apague
as minhas pegadas na relva
guarda
as minhas pérolas de silêncio
(jamais os
meus extremos)


teu excesso de amor
abrevia
o quebra-cabeça


mas as últimas peças
cobram 
a promessa
da alegria


possa renascer
com olhos de epifania:
só se realiza
o ser
quando o amor
vence o poder
em todas
as 
hierarquias






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 317