terça-feira, 28 de outubro de 2014

SECOS E MOLHADOS





A Teologia mata o amor
cria categorias mistérios dominações
O amor foge e não se resolve:
amor divino amor filial
amor ágape amor carnaval
O primeiro ato do amor
é esquecer o ato de amar
e desterrar os gurus os santos
enterrar os compêndios de compaixão
e os cursos de correspondência da paixão
E amar amar amar amar amar
até jamais enjoar
Amar não para ser amado pelo amor
amar não em nome do amor
amar não com as regras do amor
mas unicamente por amor
Só existe amor
quando existe compromisso
de não amar
Só existe o amar
quando se carrega dentro 
o mar









Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 534



quarta-feira, 22 de outubro de 2014

EPÍSTOLA AOS TOLOS

'Universal Love' de Julie Jensen



Não quero mais o amor cartesiano
que divide o ser em corpo e alma:
que elogia as pernas e a finesse
mas critica o recato e o idealismo
Quero o amor universal
que seja sexo e transcendência
prazer e Deus morte e renascimento
e nenhum tratado ou encíclica
reclame o território conquistado


Não quero mais o amor
que mata a cobra
e esconde o pau
Quero o amor que seja
cara e coração
Mostrem-me com urgência
onde começa o corpo e termina a alma
Procurem pacientemente
em que bolso escondem-se o amor e a fúria


Não quero mais o amor cartesiano
descartiano descartável
até por Descartes - pois pois - 
nunca foi dois mas somente um


Quero o amor que seja apenas amor
e não simulacro de amor
e que seja absolutamente puro pleno e ridículo
como o céu invadido por casal de passarinhos








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol, 1, p. 535





sexta-feira, 17 de outubro de 2014

POEMA 3X4

Luís Augusto Cassas



Meus olhos estão brincando
de esconde-esconde
entro o prato de sopa quente
No entanto estão frios e lúcidos
e não parecem conversar
Estão quietos resignados
investigando meus sonhos
policiando meus sentimentos
Às vezes me vem um visão triste
(sinto que dentro do prato
um menino com fome me espreita)
e eu sinto raiva de todas as ideologias
Então fico pausando lento vagaroso
e com vergonha de mim mesmo
dissolvo a sopa quente com a colher
para que meus olhos não me vejam









Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 126



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

BRINDE NO BANQUETE DO MUNDO






Eis-me aqui Mundo
Sorvi a tua taça
até o fundo


Convoquei o Deus
e os deuses todos
ao néctar do todo


Louco serafim
derramei em mim
teu perfume chinfrim


Impregnei a ti
do meu amor barroco
sem estafilococos


Dá-me a obra final:
a transcendência
do açúcar e do sal








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 571



segunda-feira, 6 de outubro de 2014

A FALA DO BECO

Beco da Bosta, São Luis-MA


nos signos de rotação
fui de áries a peixes
nuvem e gavião


livrei-me das neuroses
com a overdose
das metempsicoses


tomei sol com Menipo
soldado em Alexandria
vaso e arquétipo


depois fui crepúsculo
na bela anatomia
de sólido músculo


estranha coorte:
só eu sei o que vem
depois da morte


verdade nua:
fui antes rua
na Catalunha


realidade-triste
em bico de pássaro
cumpri-me alpiste


quando fui água
segui o roteiro
de todas as mágoas


quando fui fogo
descobri o ideal
do bem e do mal


quando fui ar
descortinei a alcova
onde o vento faz a curva


mudo no mundo
girando na roda-gigante
da alma do todo


reencarnando
ora encarnado
ora verde-musgo


eis-me agora no chão:
pra entender a matéria
e o seu coração




*
tua alma tantra
tem superlativo nó
dar-te-ei um mantra
as cinzas do pó


mas logo te advirto
nada posso aprendizar
a não ser as lições
do teu próprio avatar


ouve: o abc do viver
compreende dois capítulos
a ciência o mestre
a arte o discípulo


como podes entender
o corpo de ressurreição
se combates a matéria
e o corpo do teu irmão?


como ousas apreciar
o belo torso de Apolo
se aos olhos da realidade
és criança de colo?


às vezes não sendo se é
pra ser-se o conteúdo
mas o que se ser pretende
é ser não sendo contudo


mas há um mini-instante
na hora do ave-maria
que a ciência do ser
é a arte do não seria


teu o dizes: sou o beco!
meu caminho é estreito
pela estreita porta
não passa a moura torta


aquele que joga pedras
no telhado do vizinho
sequer perceberá
as pétalas do caminho


quem atira pedras
e esconde a mão
jamais conhecerá
minha salvação


mas quem reza minha cartilha
pega no pote
e segura na rodilha
esse é de família










Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 623
Foto: Gilmore Guy






quarta-feira, 1 de outubro de 2014

APOCALIPSE (2)




1
Nos tempos em que eu transformava pães em pedras
o sol mergulhava na matéria
e produzia ferimentos em meu coração
Vãos eram os pensamentos palavras e obras
e minha alma inconsolado deserto: covil de cactos
constelação e escorpiões


Época de as serpentes trocarem as peles
e a vaidade eclipsar as cores o camaleão
O amor se transformou em cólera
e a paz em campos de concentração
A humildade vestiu o manto do orgulho
a aparência triunfou sobre a essência
a fé foi derrotada pela tentação




2
Quando aprendi a transformar pedras em pães
o sol ergueu-se da imersão na matéria
e proclamou a temporada da transfiguração
Nova fonte e luz jorrou em meu espírito
e veio ter comigo o anjo da alegria
Rosas brotaram das chagas do coração


Desde então tenho colhido safra de milagres
e os gafanhotos foram expulsos das plantações
A serpente foi vencida pela pomba
o egoísmo tornou-se confraternização
o prazer buscou o sentido da vida
a morte transformou-se em vida eterna
a glória a vida vencera a tentação




3
Bem sei
que pães alimentam
e pedras apedrejam


Mas sei também
que pedras podem alimentar
e pães apedrejar
(Ó granito da vida
quando te dissolverás?)


Humilde ao raiar do dia
quedo-me contrito ao divino alquimista
que transmuta a pedra dos meus sofrimentos
no pão de sua perfeição


Eu só vivo
porque Ele morre
Eu sou o forno
Ele é a quinta-essência
Ele é a luz eterna
Eu sou o trigo
Eu sou a gota e sangue
Ele é o coração









Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol.1, p. 386