sexta-feira, 29 de agosto de 2014

O BOM LADRÃO





Quando o desconhecido chegou
montado em seu corcel de pele negra
enviado pelos deuses da morte e transformação
negra noite desceu sobre o céu da alma
e escureceu até o disco solar dos olhos
Não reagíssemos e lhe entregássemos
os bens mais preciosos:
o prazer o poder o sentido da vida
Até a mais íntima essência
guardada no jardim interno
(O sangue fervendo nas veias
trazia à superfície as flores do mal)
Quando abrimos os olhos novamente
um sol de verão iluminava a noite da alma
A morte derretera as máscaras de cera
e a transformação entoava seu cântico de despojos
Na maçã dos rostos e no clarão dos olhos
o sofrimento exibia a sua discreta recompensa
Estávamos mais velhos ou mais jovens?
Havíamos morrido ou ressuscitado? 
A vida (agora) pesava como nunca
mas leve era o fardo a carregar
Secretamente entre nós uma cruz solar
encimava a lua negra do destino








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 420



sexta-feira, 22 de agosto de 2014

T (O FILHO PRÓDIGO: UM POEMA DE LUZ E SOMBRA)





Órfão de mim e sozinho
então tomei meu menino
apertei-o contra o peito
lambuzei-lhe par de beijos
cabelos acariciei-os
ombro a ombro embalei-o 
(arco-íris expulsando escombros
irrompendo à terra o veio)
desfiz-lhe o nó na garganta
cera lavei-lhe dos olhos
acendi-lhe o sol no seio
sequei-lhe a fonte de mágoa
clamando à dor o despejo
sob proteção dos afagos
dissolvi-lhe o sal amargo
sentindo que a frágil criança
transformava-se contrafeito
não em embevecido infante
mas em ancião satisfeito
aquele que em densa névoa
ressuscitou-me do leito
encaixando-me as suas pernas
para um caminho refeito
amparando as minhas quedas
guiando-me a novo berço
Como não ouvir o estampido
de dois peitos comprimidos
boi e bezerro em mil lambidos
derramando os seus vagidos?
O velho e o menino
o menino e o velho
cumprem o seu destino
nos mesmos artelhos
Abraçado à velha árvore
senti no tronco o temor
novos ritos de passagem
antecipação da flor
Descascando velhas mágoas
de enclausuradas cebolas
serpentes tornadas lágrimas
transmutam-se em alvas rolas
Do pranto meu lave o Rei
os pés feridos em alcatrazes:
Pai não te deixarei
enquanto não me abençoares
Ó horas de viver
ó horas de morrer
conciliou-me o ser:
morrer e renascer
Já não sou eu quem vive
é o pai que em mim revive
Já não sou mais eu quem chora
é o pai que em mim ora


( - faz a suma correção
inverte a inércia em ação:
nove meses no mundo
três meses no fundo

sê mensageiro do verde
refloresce a tua família
sê como filho à tua filha
a todos abastece a sede

ulisses em retorno à ilha
recupera a alta magia
torna as feridas em espigas
junta ao trabalho a alegria

ergue-te ó fênix das sobras
planta o sol em tua casa
concedo-te poder  e honra
pra concluíres tua obra)








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 398




quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O FILHO PRÓDIGO, UM POEMA ESCRITO A PRANTO DE OSSO




Platão, o sacerdote da beleza, afilhado de Apolo, o deus da luz, era preguiçoso e foi vendido como escravo. Louco, acompanhava outro louco, pelas ruas de Atenas: a "mosca errante", Sócrates. Tinha inveja de Homero e o expulsou da República. Ele que conhecia a senha da imortalidade e elaborou sua filosofia inspirado no semântico tripé das palavras beleza, justiça e amor, padeceu de estúpida fraqueza e investiu contra Homero, o rei dos poetas.

O selvagismo do preconceito contra a grei dos rapsodos data talvez daí, da Grécia de Platão. E o que mudou não mudou. Nós, os poetas, somos os artistas do ócio, nutridos sobretudo pelo ópio da preguiça, conforme interpretam os endeusados de gravata, mandantes da revolução industrial-materialista; esquecendo-se de que foram os poetas que alimentaram, primeiro, o espírito contemplativo e perscrutante dos filósofos, na antiguidade. E quando a filosofia se ateizou, a poesia continuou a alimentar o sentimento do mundo, através das línguas de fogo dos poetas. Diante de tal realidade desoladora, que indica a falência da poesia como instrumento de catarse da mente humana, só me resta perguntar aos silfos se é preciso que nós, os poetas, leiamos nós mesmos para que tal ofício não desapareça das páginas da literatura. 

Certo? Errado. Só uma coisa neste planeta movimenta a alma dos homens, a poesia. Que dá voz à voz de outras vozes. Luz parida pela inocência da própria luz. Centelha que fecunda fulgor e depois é constelação. Pois que, então, pode-se dizer que o poeta é um ser antenado entre a magia de duas realidades: a linguagem e o mundo. E reflete, portanto, na essencialidade epicêntrica de sua obra, o nada antes dele e o nada depois dele. Amor e liberdade andam juntos, acoplados à genial fantasia desse ofício: o de explorar os domínios subterrâneos do sonho, através da palavra. É o mergulho da paixão cantar e ser poeta. A poesia ilumina a vida. Acende lumes no rosto ilusionista das coisas. É mistério e realidade.

É o que faz, sôfrego e ardente, o menino cinquentão Luís Augusto Cassas, desde a rebeldia de suas primeiras emoções em lutar corporalmente com a palavra, desrespeitando os silvos e semáforos fechados, para chegar aos umbrais da eternidade, troando a poesia República dos Becos (Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981), seu livro de estreia, que o inseriu definitivamente no cenário da poesia brasileira.

Eu o conheci aqui mesmo, sobre o calor desse asfalto do cerrado goiano, nos meados dos anos de 1980, quando éramos ambos entrincheirados pela loucura rimbaudiana dos sonhos. Queríamos porque queríamos mudar a rotação cósmica do homem e seus desígnios de mortal,  para o grande Éden, os respiram as delícias do devaneio. Éramos, portanto (e ainda somos) os pedreiros da metafísica: a boca cheia de sol e o verbo contra a podridão da vida. O Cassas às vezes Iorquiano, às vezes maiakovskiano, do povo, no permeio do povo, como um profeta, ele e sua cornucópia de lirismo; o pródigo de volta, afetado espiritualmente pelos tormentos da eterna luta entre Ormuz e Arimã, explodindo em fagulhas ao retorno da luz.

A poesia desse vate tresloucado sempre me causou estranheza e assombro, pelo ácido humor de suas estripulias com a palavra sustentando a elegância imagética de seus versos. O que o transforma num clássico gozador do barroco e do épico, do burlesco e do erudito; eletrizado de amor e tesão quando copula com a quimera de suas musas, no etéreo da psiquê ou da carne. Ínsito a essas aventuras de piruetas com a linguagem está a elegância do seu texto, em miríades de faces e emoções de originalidade e dor. Porque o belo, em poesia, que não dói, não é belo, é casca, máscara de areias. E a poesia que não provoca poesia, não é poesia. Pois que perpetuar o sopro da beleza é a sua função; ir além do efêmero, dissipando-o no tudo deste nada, para o que viemos, e não somos nada, além de urina, solidão e grito. A natureza da criação artística, sim: fala tudo. E o Cassas sabe disso, tanto que é um poeta frequente, de pé, absolutamente antenado com a universalidade dos temas, - se devaneico, infernal, satírico, lúdico ou místico - o corpus de tudo no singular-plural de sua visão é o que importa: solidão em núpcias com o fogo da quimera.

Lúcido mediador entre o medíocre e o frugal, a santidade e a luxúria, o jubiloso e o tétrico, o poeta do sol é ácido e mordaz, às vezes bruto, como eu gosto, mas rebelde e belo e também manso como um filhote de rouxinol.

Feliz desse maranhense de São Luis (onde nasceu em 2 de março de 1953), que tem como vizinho de seus olhos escancarados para as imensidões do infinito, lá onde Homero é o sol e Safo de Lesbos é a lua. Essa pira que arde e lhe e lhe purpureia poesia, enquanto o insula solitário, a palmilhar léguas de areia, tangido pelo encanto aterrador oceânides - cujo sementeio lírico já chega a quase vintena de livros - traduzindo o seu altíssimo espírito de fidelidade para com a palavra, esse divino tijolo de luz, deslocando-a, com invejável primazia, para dentro de sua morada eterna; o coração do texto, bafejado pelo orfeico sopro da criação.

Ele, que já desceu às plagas infernais e retornou transfigurado à praia, nos faz agora, com este O Filho Pródigo: Um Poema de Luz e Sombra (Imago Editora, 2008), passageiro de nova aventura cataclísmica em redor da mente humana. Cassas, o filho pródigo da poesia, é também a própria matéria prima neste filho pródigo de volta ao aconchego da paternidade. É um livro louco, freudiano, espiritual, dramático, fúnebre e lírico em direção ao cimo do grande Zen, a catedral do íntimo. 

Nele, Cassas - cuja arte o faz luzir acima dos seus demais congêneres, bruxos da poesia - explode inteiro. É o profeta de si mesmo, crucificado pela nostalgia da razão absoluta, todo empapado de pavor e lirismo, acendendo os archotes teologais da esperança, rumo ao canto do retorno, a Casa do Pai, seja lá onde for, se no Planeta do Sinai, ou no lampadário das galáxias, onde o sol é azul. Ruptura e volta. Remorso e ressurreição, marcam a angústia deste retorno à paternidade do colo planetário sob o trono das nuvens, na floresta das sombras.

A poesia desse atlântico ribeirinho nega, perscruta, canta e exalta. Ensina o homem a sentir com didática emoção. O pensamento vem depois do incógnito infinito para as mansões do etéreo. A palavra é o veículo, a roda da linguagem. Entra no corpo inteiro das águas desse pretenso e filosofante conceito de poesia, que o mestre Aristóteles chamou de mímesis, imitação da natureza, retórica do espírito.

Enquanto anjo órfão, perdulário, que trava solitários solilóquios com as pernas do pai, no fogo das lembranças, alando-se de tristezas à morada do poema, endereço metafísico para o qual foge, após 40 anos vagando em círculo, de périplo em périplo, pelas águas da frustração, à procura de Ítaca na alma, com "pétalas de sangue" brotando-lhe dos dedos - o filho da bruma flerta com a maldição, mas despetala também rubro ramalhete de jacintos sobre o paul das trevas, com sua "roupa de gaivota"a  inquirir o inescrutável "poder do incognoscível", sabendo que a vida é "o bueiro dos mistérios, sob o sol da via láctea.

O Filho Pródigo portanto, do Cassas, é um poema escrito a pranto de osso, doloroso, rilkeano, angelical, satânico, litúrgico e filosófico, onde indagações do sangue e da alma se transmutam em corpos de pai e filho; um na viagem do outro, de volta (e revolta) ao Paraíso, da maçã proibida pela mentira dos séculos.

Percebe-se, então, a partir daí, que, no âmago do discurso emocional-conteudístico deste autor, está o retrato de um homem assombrado, atônito; e que pede tréguas, resposta aos ícones da mitologia, aos oráculos e até à soberana luz dos astros, em comunhão de íntimos mistérios com as pulsações do universo. O tempo para ele, de jangada a navegar, deflagra o sentido das coisas e do sentimento do mundo, mas sobretudo, embeleza-o, em seu fluxo lírico do fluir dialético e eterno.

Cumprida a missão, trombeteia o vate na portada do seu trágico e amoroso cântico, de preito ao pai: "dissipados os véus, diante do trono: o Múltiplo retorna à Unidade". 




                                                                                                              Gabriel Nascente







GABRIEL NASCENTE



Nasceu em Goiânia, Goiás, em 1950. É autor de duas dezenas de livros de poesia que a crítica especializada recebeu com entusiasmo e que mereceram prêmios e reconhecimentos.
Seu INVENTÁRIO POÉTICO, de 500 páginas, publicado pela editora Alternativa em 2006, revela uma obra copiosa e vibrante que começa com Os Gatos, em 1967, e culmina com A Dança dos Relâmpagos (2003) mas que seguirá na plenitude e na maturidade de sua inquieta criatividade. 






segunda-feira, 18 de agosto de 2014

GOLDEN MEDITATION




Sou denso e sutil moderno e eterno
Sou livre de toda impureza
sagrado imortal refulgente
Servir a todos é a minha verdade cósmica
Sou inércia atividade e equilíbrio
Pra refrear a cobiça e a ignorância
escondo-me no subsolo da terra
Sou raio solar materializado
e não poeria radioativa do universo
Servir-me é fazer-me escravo
Circular-me é fazer-me senhor
Se a nobreza é atributo da alma
por que empresto brilho a quem  me detém?
Se não ascendo a nenhum valor moral
por que a muitos concedo credibilidade?
Se sou energia condensada solar
por que de muitos obscureço a consciência?
Quem confunde essência a aparência
é que me atribui valor irreal
Paradoxo da sabedoria oculta
quem muito guarda menos me possui
Quando se dissipar a ilusão dos homens
conceder-me-ão merecido valor
Pobre será aquele que avaro me retém
Rico será o que me tem pra ofertar







Luís Augusto Cassa
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 282




quarta-feira, 13 de agosto de 2014

MISSA NEGRA



Visto o poema de negro
in offertorium de Jorge Luís Borges:
o espírito que não dorme o olho da treva
as lentes de contato de Sansão &
a bengala dourada de Homero
o number one em queda


Vinte litanias de madame satã
em (des)intenção de sua calma


Escrevo em seu túmulo
na biblioteca de Babel:
"a poesia é a salvação"
capítulo IX
versículo 16
(reprodução autenticada
página 857
do Livro da Infâmia Universal)


Declaro luto à treva:
durante três dias
versos
queimarão velas vermelhas








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 203



segunda-feira, 11 de agosto de 2014

PENSÃO



Habitam comigo há anos
no quarto escuro de mim
dividindo aluguel
destas trinta e três vértebras
(usando o mesmo banheiro
prato talher e cadeira
palitando os seus molares
logo após a sobremesa)
um estudante de Letras;
um boêmio que recita
Lorca; um funcionário público
que sofre dores nos rins;
um cozinheiro que frita
ovos às três da manhã;
um advogado que no fórum
advoga o imundo do mundo;
um conquistador barato
sem lábia e brilhantina;
e um poeta de esquina
que por vergonha do ofício
não quer se ver declamado
em reuniões sociais







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol.1, p.65



terça-feira, 5 de agosto de 2014

AS NÚPCIAS (3)



as brancas noivas de cristo
exibem na pele os ritos
que o invisível contato
do amor ferem-lhe como cactos
oram ardentes sob os véus
ao bem amado dos céus
os dedos na cura da ânsia
friccionam as alianças
manequins de valentino
excitam o eros divino
o puro amor entre os flancos
queima-lhes os sorrisos brancos
desfilam puras as primícias
de um jardim de delícias
mesmo na santa distância
efetua-se a transferência
as brancas noivas de cristo
exibem nas faces o suor
recompensadas do rito
que lhes maquila o amor
a virgindade que as inflama
recompõe-se à luz da chama
ruborizadas as amadas
vestem as almas desnudadas
exercitam o verbo amar
sobre o leito do altar








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 431


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O GUARÁ




sou filho do sol:
cinza nasço
adolesço rosa
vermelho despetalo


em horas azuis
tinjo púrpura o espaço
esponsal do bispo
enxovais consagro


voando à beira-mar
solto belas plumas
floro sem cessar
homenageio as dunas


ao mundo não vim
pra adorno do colar
nem posar de souvenir
meu reino? brilhar


diálogo das espécies:
voo à imagem e semelhança
mas mantenho distância
a violentos e  répteis


confesso: vivi-me em flor
entre céus e crustáceos
mas a luz do equador
foi o melhor repasto


recado ornitológico
aos homens e seus brocardos:
não sejam antro mas lógicos
em seu esplendor antropológico


admirem-me me sossego
brinquem com o próprio medo
exibam suas penas
jamais minhas plumas








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 412



sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O SENHOR DA GUERRA





1
cordeiro de deus
fúria do leão
touro de orfeu
- vede o grande mar
da desolação - 
remédios adoecem
médicos matam
padres não confessam
pastores pastam:
contra grande besta
quem nos salvará?



2
o tiranossaurus rex
quem o imaginou abolido
do sangue da criação?
o dna entra em sêxtil
o gigantesco réptil
ei-lo em operação
máquina mortífera
a fome de vísceras
aperta-lhe o botão



3
cordeiro de deus
berra mais forte
que os donos da terra

cordeiro de deus
grita mais fundo
que os canhões do mundo

cordeiro de deus
clama mais alto
que os animais imundos


águia
de oxalá
vinde
nos salvar



4
baixa as tuas línguas de fogo
explode a mansão do logro
destrói os tímpanos dos poderosos

fulmina os cavaleiros do apocalipse
livra-nos dos arquitetos de auschwitz
salva-nos do eterno eclipse

incendeia-lhes os campos de batalha
reduze-os a pó e palha
faz das suas arrogâncias mortalha

espalha a tua sagrada ira
devora o fígado da pantera
- essa prostituta das eras -

dá-lhes por comunhão
o sangue derramado
do próprio irmão



5
depois
eleva as tuas ovelhas
serve-lhes o banquete das estrelas
veste-as no linho das centelhas
acalenta-as na música das esferas
então
na alcandorada manhã
saciada nossa fome
lavaremos tua lã
na luz do coração do homem








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 523