terça-feira, 17 de novembro de 2015

BANDA DE ASA





pomba do divino
asas do eterno
confessai aos sinos
barreira do inferno


dai coração novo
a todas as criaturas
livrai-as do fogo
noite mais escura


pousai sobre os mísseis
absolvei-lhe os destroços
tornai-os úteis fósseis
museu paleontológico







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 173





segunda-feira, 5 de outubro de 2015

DIALÉTICA DO OLHO ROXO






todo poema é um soco no queixo da história
um cruzado de esquerda na face da arte
um pontapé no traseiro da memória e da vida


frágil ou potente lento ou ligeiro todo poema
é o ato guerreiro de estremecer maxilares
ainda que leve á lona quem o pratica


a quem não jogou a toalha







Luís Augusto Cassas
In 'A Poesia Sou Eu' vol. 1, p.191



sexta-feira, 18 de setembro de 2015

ARCANO 11 (A Força)






ah, minhas feras
dilaceradas panteras
meu leão de Madagascar
acaricio-te a juba de ouro
troféu invicto das selvas
e ao abrir tuas mandíbulas
com o toque firme das mãos
a força que te ilumina
reflui pelos rios das veias
inunda os centros nervosos
e me doma a sanha assassina








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 262





terça-feira, 14 de julho de 2015

CARTA AO ALEPH





(ou a 2a. Luta de Jacó contra o Anjo)




por que me ofertas mãos de seda
a tantas mãos renegadas
e a meus dedos se tornam espadas
despencando-me à treva?


por que me acenas caminhos
se carregas as mãos crispadas
e colho a marca dos espinhos
das plantas secas na estrada?


por que me cobras o dízimo
por ter as mãos espalmadas
se o território do vazio
é a palmatória do nada?


por que me concedes a trégua
de repousar em tuas águas
passageiro de mil léguas
afoga-me em vale de lágrimas?


por que me obrigas a voar
de retorno à tua morada
se me interpões o mar
e a inexistência de asas?


que estranha missão reservas
aos dependurados dos pés
_ inversas as bocas mãos de viés _
mastigar ervas amargas?


qual o meu crime hediondo
senão viver da vida o sonho?
vale o céu o dia de hoje:
o sol a luz não me soube!


toma as formas do humano
e a luz precipitará
ã leitura dos meridianos
nova dimensão do olhar!


posto que retornas à cena
ferindo-me a coxa em refrão
sentirás a dor eterna
lançando-te ao chão com o bastão!


confrontando ao tronco a árvore
vergado o galho na mão
à alma tocada a carne
abras (enfim) o coração







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p.379







quinta-feira, 2 de julho de 2015

DE AMOR E DE SOMBRAS






O amor não morre Rosa


O amor não é ave em extinção
O amor não entra na lista dos desaparecidos
O amor não quer saber a quem se dar
O amor nunca deserta de sua função de ser


Às vezes o amor despede-se: tira férias
pois o coração que acendia a tocha apagou


Então se recolhe e se transfere
viaja a um novo coração ferido
torna-se presa de suave melancolia
e retorna disfarçado em sofrimento e alegria


Mas súbito a palha vira fogo
A floresta invade o céu
e inesperadamente uma tarde
a rosa nasce entre as tochas


Onde era azul agora é verde
onde foi Joana agora é Célia
onde foi Tristana agora é Helena
onde foi Clara agora é Karina
e tudo renasce como a chuva
sobre as pedras ávidas de sede


O amor não morre Rosa


O tempo esculpe novos rostos
em antigos sentimentos







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 352



sexta-feira, 19 de junho de 2015

RUMPELSTISTIKEN






1
Um dia ficarei absolutamente só
com as minhas lembranças
Solitárias elas virão Uma a uma
descerão a escadaria da memória moral
Pisarão com calma para não ranger
as velhas tábuas do passado
As boas as tristes as passageiras
nenhuma descartarei (Chopin ao fundo
entoará uma sonata distante)
Mensageiras da minha secreta verdade
tingiram as cores do meu arco-íris pessoal
e coloriram o meu sonho de viver
Despedirei cedo os empregados
pra que venham sem cerimônia
Descerrarei os antigos castiçais
Polirei a prata
Baterão à porta? Velhas amigas
sentar-se-ão à rústica mesa de madeira
pra fumar o cachimbo das recordações
Pássaros esvoaçarão contra o relógio
Xícaras de porcelana comovidas as fitarão




2
Ouvirei (comovido) suas conversas de nuvens
relatos e viagens parábolas de sonhos
obituário do acontecido rastros noturnos
da lanterna mágica sussurro no vitral
(Ó trágica flor de ouro maldição de anjos decaídos:
o temível segredo que eu intuía elas sabiam!)
Acrescentarei (com gentileza saturniana)
um ponto de vista virgem pedido de desculpas
ficção de outros personagens leitura do cristal
O que não foi sonegado entenderei
O excesso perdoarei Palavra de lei
Algumas envelheceram juvenilmente
e aderiram ao amargo chá das lamentações
Outras despiram a velha roupa dos preconceitos
e falam o prenunciado idioma da transfiguração
Onde havia ferimento agora há unguento
Onde havia amargura há cura
(Ó trágica flor de ouro maldição de anjos decaídos:
o temível segredo que eu intuía elas sabiam!)
Tudo o que era grande tornou-se pequeno
Tudo o que era pequeno tornou-se grande
e invadiu o pesado teto das reminiscências
- flor rebentando os telhados da casa -
pra colher a saliva dourada do sol


Escombros já não pesam nos lombos
Da desgraça sopra o vento da graça
O que eu sei o que eu não sei
passam a ser lápides extintas
música distante convívio de flautas
frutas submersas no espelho do vivido
Um arquipélago de lágrimas
desata um cardume de sorrisos
Todas as culpas e remorsos lavados
na clara fonte da compreensão
secam no amplo varal da resignação
E me recolho pacificado aos aposentos
lavado na pura água do desfalecimento
Coração de água ferido de um rei




3
Ó destino és (como eu) um animal divino
farejando as pegadas do sentido da vida
De que adianta pagar o cigarro das luzes
as pálpebras e a consciência
se os deuses guardam ciúme dos homens
e se vingam tão eternamente?










Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 364






quarta-feira, 10 de junho de 2015

DIA DOS NAMORADOS





à luz de velas
te conheci
à luz de velas
me despedi



nosso amor começou
dia de finados
e findou
dia dos namorados








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 341





quarta-feira, 20 de maio de 2015

ODE À HÓSTIA





Sol branco de trigo e paz
iluminando o universo interior
Floresces no céu da boca
com gosto de mistério e de milagre
Como Agostinho em Óstia
dividido entre o amor sensual e o espiritual
dissolves-me o parco entendimento
e sinto o amor com a essência do ente amado
Menino ávido de aurora e luz
elevado nessa pura lei da gravidade
oferto os lábios à seara diária E floresço:
trigal de Deus hóspede do divino
Cada ceia acorda a sagrada família interior
e renasço em mim multiplicado em pães e peixes
Brasas ardentes povoam-me o coração!
Que o sol que me desce às entranhas
sarça branca fogo imaculado
é o próprio cordeiro transplantado
síntese solar da mais pura alquimia
que converte em ouro tudo o que era chumbo
e faz do humano a passagem para o sagrado









Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 401



quarta-feira, 13 de maio de 2015

45º FARENHEIT






Teu beijo
é a fórmula secreta da iniciação mais alta da magia
Teu beijo
é o poder da energia pura de todas as cataratas
movendo as hidrelétricas do mundo
Teu beijo
é um pássaro branco carregado de dinamite
Teu beijo
é o manifesto do céu em minha língua
Teu beijo
é a demissão sumária de mil mulheres dependuradas
em minha boca
Teu beijo
é a sétima maravilha do caos
Teu beijo
é a overdose dos destronados que partiram sem asas
segurando uma rosa de cobalto entre os dedos
Teu beijo
é a carência coletiva dos mendigos pedindo compaixão
à porta dos supermercados
Teu beijo
é o sabor de eucalipto do drops da vida
Teu beijo
é um planeta tresloucado gritando pai! por ter saído
da órbita celeste
Teu beijo
é a extrema-unção dos ressuscitados
Teu beijo
é a rendição incondicional dos exércitos da minha tristeza
Teu beijo
é o cumprimento da secreta lei do abismo
tábua da desordem céu do excluído
que faz minha boca ofertar-se penitente
no altar do mais absurdo sacramento









Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 348





terça-feira, 5 de maio de 2015

AMOR: O CUMPRIMENTO DA LEI






De grande e pequenos gestos
vive o amor:
sol no coração
água na emoção
até molhar as raízes
do mais alegre verão!


De grande e pequenos gestos
morre o amor:
lua no coração
deserto na paixão
até secar o íntimo oásis
da fonte da emoção!


De pequenos e grandes gestos
renasce o amor:
fogo no coração
chuva na emoção
até ressurgir a luz
cristalina da paixão!


Ó natureza naturante
ferida mas não decaída!
De pequenos e grandes gestos
renasce sempre o amor
pra que se cumpra a natureza
na lei eterna da vida!








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 410





sexta-feira, 24 de abril de 2015

EROSPOEMA

O Retrato de Gala, Salvador Dalí







com a pica do mestre de obras

picasso pintava o sete
mas esbanjava tinta




contido era dalí

de pincel duro ruborizava as telas
gala na cabeça










Luís Augusto Cassas

In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 219








sexta-feira, 10 de abril de 2015

ALEGRIA: PRINCÍPIOS E MÉTODOS DE TRATAMENTO*







contra a depressão
e a fúria dos dias
Alegria


fadiga espiritual
tediário
sessão-nostalgia
Alegria


cortar mau-olhado
abrir caminhos fechados
proteção da virgem maria
Alegria


ferrugem do ser
angústia de heidegger
falsas profecias
Alegria


existencialice crônica
tragédias cômicas
hora agônica
Alegria


flatulência
males do bolso
onipotência
Alegria


egoísmo coletivo
busca de sentido
ódio radioativo
Alegria


ó alegria:
servi-vos do arroz de aletria!
estrela-guia da utopia
Alegria


p/ todas as patologias
Alegria
p/ os efeitos colaterais da alegria
Alegria
contra a alegria
Alegria






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol 2, p. 208





[*] Para curar  o  ser pela  raiz,  o  leitor pode utilizar  a potenciação homeopática hahnemanniana na escala de 1 para 100 até o infinito.





quarta-feira, 18 de março de 2015

A CASA DOS ESPÍRITOS ( O Batismo da Cruz sobre a Foice e o Martelo)


Maria de Jesus Carvalho e Maria Aragão


a Maria de Jesus Carvalho 
e Maria Aragão


1
duas marias
cheias de alegria
uma era espírita
a outra: comunista

duas mulheres
cheias de graça
duas mulheres
contra a farsa

duas marias
de luz
duas marias
da cruz


2
uma jejuava
na revelação
a outra comia
a revolução

uma era maria
de jesus
a outra: maria
aragão

uma confiava
no céu
a outra confessava
ao chão


3
uma pregava
a luta de classes
a outra: o amor
face a face

uma iluminava
a consciência
a outra partejava
a inocência

uma à esquerda
de jesus
a outra: à esquerda
da luz


4
na casa dos espíritos
maria de jesus lavava
na casa dos aflitos
maria aragão passava

uma confiava no coração
a outra: na cor da ação
uma distribuía chinelos
a outra: foice e martelo

duas marias das ruas
passando a vida a limpo
duas marias sol e lua
jogando a miséria ao limbo


5
assim as duas marias
grávidas de compaixão
findaram os dias
na mesma oração

uma era maria
de jesus
a outra: maria
aragão

uma foi rindo
pro céu
a outra: sorrindo
ao chão







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 444