O critico Ronaldo Cagiano analisa a força espiritual
de A Poesia Sou Eu,
Poesia Reunida, verbo-testemunho que revela a verdadeira
condição
humana de toda a obra de Luís Augusto Cassas
Já estava faltando à bibliografia
brasileira uma edição à altura da qualidade e da importância da poesia do
maranhense Luis Augusto Cassas, um escritor que vem fazendo de sua militância
literária um profundo exercício de reflexão existencial e uma proclamação da
necessidade da poesia nesse tempo em que há pouco espaço para a virtude do
pensamento e do mergulho poético nos dilemas que nos rodeiam.
Com a recente edição de “A poesia sou eu – Poesia reunida”, em
dois volumes (Ed. Imago, Rio, 2012, 1366 pgs, R$ 127,50), vêm a lume 16 títulos
publicados e outros 4 inéditos. Nesse vasto percurso poético de Cassas, está
mapeada sua incursão pelas diversas vertentes que a sua palavra-testamento e
seu verbo-testemunho são capazes de comunicar, desde a relação
lírico-sentimental do poeta com suas raízes afetiva e geográficas até a visão
crítica e questionadora da realidade, sem contudo desviar-se pelo panfletarismo
ou a apologia política.
Em Cassas, tanto o poema de viés sentimental quanto a busca da razão crítica,
convivem simbioticamente como expressão ou instâncias deflagradora de um olhar
peculiar e cirúrgico, estabelecendo um modo de ver e sentir de um poeta
antenado com as angústias humanas e as emergências do seu tempo. Como diz em seus poemas - “O homem
/ é animal poético/ em pleno verão”; “Embora
o olho não perceba, sabe-o o coração” – Cassas é o ser da escritura em
todas as estações, o homem da consciência inquiridora, o poeta que ausculta o
íntimo para desvelar não apenas os segredos da alma, mas des(a)fiar o labirinto
psicológico e as agruras sociais. Com sua voz aguerrida, não se constrange
diante mazelas e do escalonamento de valores sociais, políticos e religiosos,
nem das falta de armas, porque a sua – a palavra afiada e intimorata – está prestes
a irromper como lâmina mordaz para combater o bom combate contra a mediocridade
contemporânea: “o dinheiro é um deu$
terrível/ que go$ta de $er adorado face a face/
e paga à vi$ta o$ seu$ milagre$/ condecorando o$ vivo$ com moeda$ na
língua/ para ab$olvê-lo$ da ferrugem do $ol do$ mi$erávei$”.
Na produção de Cassas há um trânsito
multifacético pelo universo formal, estamos diante de um poeta que não se
prende a fórmulas, igrejas estéticas ou modismos, sua arquitetura verbal funde
elementos de diversas escolas. Da tradição à vanguarda, do clássico ao moderno,
seu artesanato funciona como ambiente propício à (re)criação, à renovação da
linguagem, à busca de experimentações, no entanto, sem aquela sensação de
provocação gratuita e falsa invencionice
muito em voga em certa poesia hoje em curso no Brasil, que se sustenta mais
pelo contorcionismo do que pelo talento, criatividade ou versatilidade.
Neste poema – “Somos feitos de nós,/ nós na garganta,/ nós no peito,/ nós nas tripas,/
múltiplos nós,/ todos os nós,/ todos nós,/ nós todos.” – o poeta transcende
o mero jogo de palavras e a intenção aliterativa para sustentar a crítica, em
alto e bom som, em estilo peculiar e estilhaçador, do estágio a quem chegou não
a humanidade, mas própria arte (ou a própria poesia), perdida no cipoal de
contradições e nós que a inviabilizam, é símbolo ou metáfora da atmosfera (ou
das contradições) em que estão mergulhadas a vida e a poesia nesse (vário)
tempo de coisificação e etiqueta.
Em sua oficina criativa o
recurso da intertextualidade e da metalinguagem estão muito presentes e
funciona como reafirmação de que a poesia não é somente ele (contrariando o
título da antologia pessoal) mas os poetas e o mundo de que somos feito, o
talento povoado de outras leituras (do mundo e de autores). Luis Augusto Cassas
deambula pelos livros, por autores antigos e contemporâneos, dialoga com outras
artes e linguagens. Na busca irrefreável de matéria e circunstância para sua
confissão poética, sua palavra implode a ordem das coisas, nada lhe escapa,
tudo é fiel leitmotiv para uma
tentativa de compreender o que aí está. Mesclando o ácido das constatações com
o humor e a ironia, flertando com idéias
e sentimentos que guardam similitude com suas preocupações oníricas e filosóficas,
com seu sentimento (do peso) do mundo, pois sabe que viver traz em si a mirada
caleidoscópica, ao mesmo tempo a sensação de estarmos num eterno carrossel que
nos liquidifica e transtorna, em que tudo é um jogo de antagonismos, um embate
entre paradoxos e possibilidades, uma peleja entre realidades dicotômicas, e
agente feito Sísifo: “girar girar/ como
um pião/ girar girar/ no centro do furacão/ rumi girando anti-rotação/
dissolvendo os hemisférios/ no sol do coração/ Hegel / redemoinhando/
ascendendo ao reino/ das aparências em união/ davi — velocidade da pomba —/
dançando ao redor da arca/ enlouquecendo a tradição/ girar girar/ como um pião/
girar girar/ até a compaixão”.
Nesse país, cuja crítica
hegemônica e monopolista do eixo Rio-São Paulo, a reboque de um sistema editorial
cartorialista e panelizado, não reconhece vida inteligente em outras regiões –
razão pela qual vivemos um período de incensamento de mediocridades e
popularização do lixo literário poético e ficcional, sintoma do nivelamento por
baixo da literatura – a reunião poética desse poeta visceral do de São Luis,
comprova a vitalidade do que se produz literariamente nos diversos brasis.
Ainda que a negligência, silêncio e injustiça dos críticos de algibeira dos
grandes jornais imponham sua criminosa indiferença, há de se destacar a
importância de sua poesia e o vigor com que velhas e novas gerações maranhenses,
de ficcionistas e poetas, vêm oferecendo à história da produção intelectual
brasileira, de Gonçalves Dias a Ferreira Gullar, de Humberto de Campos a José
Sarney, de Josué Montello a Bandeira Tribuzzi, de Sousândrade a Lago Burnett,
de Catulo da Paixão Cearense a Salgado Maranhão, de Coelho Neto a Ronaldo Costa Fernandes,
Viriato Gaspar, Antonio Miranda e Domingos Pereira Netto.
Poeta por vocação, inspiração,
dedicação e paixão, Luis Augusto Cassas vê agora seu nome e sua obra reconhecidos.
Nesses dois volumes faz –se justiça e contempla-se a verdadeira dimensão humana
de seu trabalho, além de consolidar uma safra da mais alta voltagem, que vai ao
magma da palavra para extrair-lhe o que é essencial e profundo. Um poeta sem
meias palavras, porque sua lavratura –
inteira e indomável! – traz no bojo a força espiritual da luta ética que
deve anteceder a qualquer autor, na mesma linha do que nos dizia o saudoso poeta carioca-brasiliense
Fernando Mendes Viana: “A função da poesia é brigar nas trevas.”
Ronaldo Cagiano*
*Mineiro de
Cataguazes, é autor de O Sol nas Feridas (poesia) e Pequeno Dicionário de
Solidões (contos), dentre outros. Reside em São Paulo.