A Supermãe. A Terra Amada. A Árvore da Vida. Antes de
tornar-se respeitável senhora, modelo de beleza mais próximo de Rubens que de
Modigliani. Não era bom que uma leonina estivesse só. Então a vida fez seu
arranjo. Despachou um taurino de encomenda. Míriam e Araújo casaram-se e vieram
para São Luis. A Árvore da Vida ensaiou os seus frutos. Cinco vingaram –
Augusto, Mariano, Antônio, Míriam e Júnior – pulando galhos, escorregando na
folhagem, tombos no chão.
Na saúde e na doença, na alegria e na
tristeza, mamãe estava lá. Tempos de vacas gordas ou magras, estava lá,
administrando o rebanho. Reservada. Transitando em seu universo mais velado que
explícito. Sacerdotisa da Estrela. A claridade do implícito. Anônima de si.
Doando-se a toda família em pensamentos, sentimentos, palavras e obras. A
generosidade sem limites. O amor em ação.
Enquanto o mais tarde desembargador
brilhava nos palcos, mamãe, leonina, fazia da casa o seu reino. Papai
educava-nos na biblioteca. Ela, mais sedutora, desenvolvia o seu arcabouço
pedagógico-gastronômico com incrível poder de fogo. Naturezas vivas da cozinha
árabe, italiana, brasileira, maranhense, com seus rituais de intervenção e
invenção. Herdamos fundamentalmente a nutrição binária na construção da
identidade: saber e sabor.
Mulher-maravilha. No ginásio me
disseram: “Tua mãe é gostosa”. Dei e apanhei, não nessa ordem. Foi minha
cúmplice nos primeiros cigarros, no jeito envergonhado de ser, na incapacidade
de receber elogios, nos traços fisionômicos e no vício de roer unhas. Após um
acidente automobilístico na juventude, dediquei-lhe um poema, driblando a
sonoterapia:
D. Míriam e Luís Augusto Cassas |
Mãe quando a senhora me embalar
(como fazia quando criança)
peço por favor imploro de joelhos
não seja indiscreta como toda mãe é
Pergunte pelo meu lirismo meu
alcoolismo
minhas rusgas e rugas
indague por tudo:
menos pelo hábito de roer unhas
(Isso eu não posso lhe responder)
Pode ser apenas o sentimento
antropofágico
a solidão onicofágica
de ver tantas crianças pobres
roerem como bichos detritos de latas
de lixo
e minha mãe eu não poder fazer nada
absolutamente nada
Esqueça tudo isso
Fale de brinquedos de cartucheira de cowboy
balanço gangorras e sorvete de
chocolate
até de Falsh Gordon e de pudim de
macaxeira
Agora peço somente à senhora
Que me embale
Que eu quero dormir...dormir...
E esqueça por favor o resto
Principalmente as minhas unhas
Deixe-as como estão
Sabia
da necessidade da alegria. Na vida – discordando de Aristóteles – elegia a
comédia o gênero mais importante. Equilibrava Marta e Maria. Notória era sua
devoção no altar doméstico onde atribulava os santos com pedidos familiares de
graças. Escondeu-se dos seus aniversários até a sexta década. Despois gostava
de comemorar. Colo grande: criou-me, criou minha filha Carolina e o meu neto Gabriel. Tornou-se
sagrada para nós pela capacidade permanente de sacrifício em favor dos seus.
Quando
viajo, lembro-me dela, a rainha do lar, como num quadro de Roberto Magalhães - o
coração na mesa. Era lá na mesa de jantar adaptada e transformada para
espetáculo de humor, consultório sentimental, discussões existenciais,
confessionário, guerrilhas familiares, pano de buraco e crapô, que ela
exercitava seu poderoso arsenal de conhecimento. O amor como alimento. O alimento
com amor. Foi lá que eu lhe disse – “Miruca, tô pensando em publicar um livro
com suas receitas”- desconversou,
envergonhada.
Em
seu aniversário de 77 anos, julho de 2009, estava feliz. Uma semana depois o
terremoto. Placas tectônicas moveram[se bruscamente na profundidade de sua
mente, abalando-a e a todos nós. Cuidada pelos seus, submergiu no escuro
silêncio do implícito e do inconcluso. Meses depois, Pablo ligou-me de sua casa
– “Pai, vovó quer lhe falar!”. O anjo da lembrança acendera-lhe breve spot em meio à tormenta. – “Augusto, cadê o livro?” .
Na confusão em que nos envolveu a sua
doença, as receitas constituídas de material oral não foram organizadas. Mas eu
havia escrito um ciclo de poemas sobre ela. A ideia original fora alterada. Mas
restou o que de melhor a minha disponibilidade amorosa pôde realizar.
L.
A. C.
Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 489
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