segunda-feira, 9 de março de 2015

PAIXÃO E VISCERALIDADE NA POESIA DE CASSAS



O critico Ronaldo Cagiano analisa a força espiritual de A Poesia Sou Eu, 
Poesia Reunida, verbo-testemunho que revela a verdadeira condição 
humana de toda a obra de Luís Augusto Cassas




Já estava faltando à bibliografia brasileira uma edição à altura da qualidade e da importância da poesia do maranhense Luis Augusto Cassas, um escritor que vem fazendo de sua militância literária um profundo exercício de reflexão existencial e uma proclamação da necessidade da poesia nesse tempo em que há pouco espaço para a virtude do pensamento e do mergulho poético nos dilemas que nos rodeiam.

Com a recente edição de “A poesia sou eu – Poesia reunida”, em dois volumes (Ed. Imago, Rio, 2012, 1366 pgs, R$ 127,50), vêm a lume 16 títulos publicados e outros 4 inéditos. Nesse vasto percurso poético de Cassas, está mapeada sua incursão pelas diversas vertentes que a sua palavra-testamento e seu verbo-testemunho são capazes de comunicar, desde a relação lírico-sentimental do poeta com suas raízes afetiva e geográficas até a visão crítica e questionadora da realidade, sem contudo desviar-se pelo panfletarismo ou a apologia política.

Em Cassas, tanto o poema de viés  sentimental quanto a busca da razão crítica, convivem simbioticamente como expressão ou instâncias deflagradora de um olhar peculiar e cirúrgico, estabelecendo um modo de ver e sentir de um poeta antenado com as angústias humanas e as emergências do seu tempo.    Como diz em seus poemas  - “O homem / é animal poético/ em pleno verão”; “Embora o olho não perceba, sabe-o o coração” – Cassas é o ser da escritura em todas as estações, o homem da consciência inquiridora, o poeta que ausculta o íntimo para desvelar não apenas os segredos da alma, mas des(a)fiar o labirinto psicológico e as agruras sociais. Com sua voz aguerrida, não se constrange diante mazelas e do escalonamento de valores sociais, políticos e religiosos, nem das falta de armas, porque a sua – a palavra afiada e intimorata – está prestes a irromper como lâmina mordaz para combater o bom combate contra a mediocridade contemporânea: “o dinheiro é um deu$ terrível/ que go$ta de $er adorado face a face/  e paga à vi$ta o$ seu$ milagre$/ condecorando o$ vivo$ com moeda$ na língua/ para ab$olvê-lo$ da ferrugem do $ol do$ mi$erávei$”.

Na produção de Cassas há um trânsito multifacético pelo universo formal, estamos diante de um poeta que não se prende a fórmulas, igrejas estéticas ou modismos, sua arquitetura verbal funde elementos de diversas escolas. Da tradição à vanguarda, do clássico ao moderno, seu artesanato funciona como ambiente propício à (re)criação, à renovação da linguagem, à busca de experimentações, no entanto, sem aquela sensação de provocação  gratuita e falsa invencionice muito em voga em certa poesia hoje em curso no Brasil, que se sustenta mais pelo contorcionismo do que pelo talento, criatividade ou versatilidade.

Neste poema – “Somos feitos de nós,/ nós na garganta,/ nós no peito,/ nós nas tripas,/ múltiplos nós,/ todos os nós,/ todos nós,/ nós todos.” – o poeta transcende o mero jogo de palavras e a intenção aliterativa para sustentar a crítica, em alto e bom som, em estilo peculiar e estilhaçador, do estágio a quem chegou não a humanidade, mas própria arte (ou a própria poesia), perdida no cipoal de contradições e nós que a inviabilizam, é símbolo ou metáfora da atmosfera (ou das contradições) em que estão mergulhadas a vida e a poesia nesse (vário) tempo de coisificação e etiqueta.

Em sua oficina criativa o recurso da intertextualidade e da metalinguagem estão muito presentes e funciona como reafirmação de que a poesia não é somente ele (contrariando o título da antologia pessoal) mas os poetas e o mundo de que somos feito, o talento povoado de outras leituras (do mundo e de autores). Luis Augusto Cassas deambula pelos livros, por autores antigos e contemporâneos, dialoga com outras artes e linguagens. Na busca irrefreável de matéria e circunstância para sua confissão poética, sua palavra implode a ordem das coisas, nada lhe escapa, tudo é fiel leitmotiv para uma tentativa de compreender o que aí está. Mesclando o ácido das constatações com o humor e a ironia,  flertando com idéias e sentimentos que guardam similitude com suas preocupações oníricas e filosóficas, com seu sentimento (do peso) do mundo, pois sabe que viver traz em si a mirada caleidoscópica, ao mesmo tempo a sensação de estarmos num eterno carrossel que nos liquidifica e transtorna, em que tudo é um jogo de antagonismos, um embate entre paradoxos e possibilidades, uma peleja entre realidades dicotômicas, e agente feito Sísifo: “girar girar/ como um pião/ girar girar/ no centro do furacão/ rumi girando anti-rotação/ dissolvendo os hemisférios/ no sol do coração/ Hegel / redemoinhando/ ascendendo ao reino/ das aparências em união/ davi — velocidade da pomba —/ dançando ao redor da arca/ enlouquecendo a tradição/ girar girar/ como um pião/ girar girar/ até a compaixão”.

Nesse país, cuja crítica hegemônica e monopolista do eixo Rio-São Paulo, a reboque de um sistema editorial cartorialista e panelizado, não reconhece vida inteligente em outras regiões – razão pela qual vivemos um período de incensamento de mediocridades e popularização do lixo literário poético e ficcional, sintoma do nivelamento por baixo da literatura – a reunião poética desse poeta visceral do de São Luis, comprova a vitalidade do que se produz literariamente nos diversos brasis. Ainda que a negligência, silêncio e injustiça dos críticos de algibeira dos grandes jornais imponham sua criminosa indiferença, há de se destacar a importância de sua poesia e o vigor com que velhas e novas gerações maranhenses, de ficcionistas e poetas, vêm oferecendo à história da produção intelectual brasileira, de Gonçalves Dias a Ferreira Gullar, de Humberto de Campos a José Sarney, de Josué Montello a Bandeira Tribuzzi, de Sousândrade a Lago Burnett, de Catulo da Paixão Cearense a Salgado Maranhão,  de Coelho Neto a Ronaldo Costa Fernandes, Viriato Gaspar, Antonio Miranda e Domingos Pereira Netto.

Poeta por vocação, inspiração, dedicação e paixão, Luis Augusto Cassas vê agora seu nome e sua obra reconhecidos. Nesses dois volumes faz –se justiça e contempla-se a verdadeira dimensão humana de seu trabalho, além de consolidar uma safra da mais alta voltagem, que vai ao magma da palavra para extrair-lhe o que é essencial e profundo. Um poeta sem meias palavras, porque sua lavratura –  inteira e indomável! – traz no bojo a força espiritual da luta ética que deve anteceder a qualquer autor, na mesma linha do que  nos dizia o saudoso poeta carioca-brasiliense Fernando Mendes Viana: “A função da poesia é brigar nas trevas.”   
                     





Ronaldo Cagiano*

*Mineiro de Cataguazes, é autor de O Sol nas Feridas (poesia) e Pequeno Dicionário de Solidões (contos), dentre outros. Reside em São Paulo.

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