sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

ELEGIA ANTIGA







Dai-me uma janela:
que seja alta e branca
como os sonhos as nuvens e as garças
e que despontem gerânios nos beirais
mesmo quando a primavera não vier
Dai-me uma janela:
_ de preferência de sobrado_
de onde se observe o mar o crepúsculo e os barcos

e uma atmosfera colonial de paz e quietude
embale — como os ventos —
os nossos corpos e sentimentos
Que seja bem alta
assim como a nossa vontade de subir ladeiras:
acima de todas as incoerências terrestres
acima de todas as maldades humanas
num lugar onde a tristeza o egoísmo
o desamor e a inveja
não a possam alcançar
Não é obrigatório
que tenha sacada:
mas é necessário
que caiba a amada
Senhores guardiães dos horizontes do Mundo
que controlais vistas paradisíacas
e paisagens alucinantes
dos seus escritórios acarpetados do 101º andar:
ficai com a visão dos lagos artificiais
aurora boreal planetas inacessíveis
arco-íris pré-fabricados
nada disso me afeta ou seduz
Eu quero
apenas uma janela
uma janela aberta para o Mundo:
e nada mais








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 112





quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O LIVRO (O Sopro)







No início era o verso
dormindo na escuridão
E um grande amplexo
regia a imensidão
Não havia sofrimento
nem não sofrimento
apenas o mistério
em seu fluxo eterno
As letras do alfabeto
suspensas e incriadas
eram penduradas âncoras
fecundando o universo
A multiplicidade
subordinava-se
à unidade da criação
Estrelas pétalas e peixes
pássaros animais homens
pastavam em cooperação
Mas a obsessão do ser
e a possessão de viver
germinaram o cio
incendiando o vazio
Então o verso
apaixonou-se pelo reflexo
e irrompeu o adverso
desnorteando a estação
-  Faça-se a luz!
clamou a Unidade
- "Faça-se a ilusão!"
bradou a Multiplicidade
Instituiu-se a cobiça
o Bem e o Belo
a Verdade e a Justiça
desconectaram-se do quatérnio
O narciso e a flor de lótus
romperam os votos
E o grande caos
turvou a fonte original
Então a Multiplicidade
dissociou-se da Unidade
Mas preservou-a a Verdade
no arco-íris das Idades






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 513
Gravura em hebraico 'no princípio' (Genesis)




segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

BOLETIM METEOROLÓGICO-SENTIMENTAL DE 25 DE DEZEMBRO







Tempo bom
temperatura estável

em quase todos os corações



Visibilidade ampla:

nas vitrines das lojas
nos vitrais das casas
nos para-brisas dos carros
nas lentes dos óculos


Temperatura em franca elevação
no São Francisco e em outros bairros da cidade
O champanha francês servido a 12 graus
o uísque escocês sorvido a 43 graus
o peru assado a 150 graus
Foguetes e risos explodindo/nozes
e abraços repartidos/


(Euforia subindo no termômetro
em níveis não registrados)


Temperatura agora em declínio
com lufadas de ventos frios
vindos das bandas da baía de São Marcos


O menor abandonado que dormiu
na manjedoura do banco da Praça Pedro II
passeia miséria e tristeza pela Rua Grande
Vê manequins vestidos/brinquedos eletrônicos/
e sente que seu Cristo não nascerá jamais


(Ele está crucificado na Igreja do Carmo)


Temperatura baixando
Nuvens espessas se formando
nos olhos do menino


Temperatura caindo ainda mais
Em São Luís do Maranhão
está chovendo






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 113



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

OS SAPATEIROS




                                                                                                 a Americo Sommerman



que mistério da fé
envolve os sapateiros?
por que velar os pés
acende no alto luzeiros?

mesmos os peixes astrológicos
aguadeiros dos artelhos
copiam-lhes o ofício místico
assistindo-os de joelhos

só o calcanhar da virgem
resiste aos calceteiros
esmagando a imagem
do mal sob os tornozelos

meia-sola bate-sola
laboram a noite inteira
talham o couro passam cola
vestem os pés da terra inteira

quero ir à festa do céu
com sapatos de boheme
luzidios como hidromel
e palmilhas de cor creme

serão os bons companheiros
da minha trilha descalça
quando tornar-me o herdeiro
de caminhar sob a graça





Luís Augusto Cassas
In O Evangelho dos Peixes para a Ceia de Aquário, p. 69
Pintura de Bosco, 'Sapateiro'


OM





quem vela
a vela?
quem chama
a chama?
quem vale
e vela
xamã
do prana?
samurai 
da paz
o Dalai
Lama




Luís  Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p.202




terça-feira, 17 de dezembro de 2013

MAMÃE E A ESTRELA D'ALVA




um pedaço de céu
caiu em minha mão
ergueu catedrais
amores sinais
um sonho de paz
e escorregou no chão






Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 507



quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

SILÊNCIOS







as ideias e as formas
pedem-me o descanso
das estações dos ventos
atravessa-me a melancolia
o sacrifício de nomear
a indizível água do mundo
o essencial tornou inútil
a carnadura das palavras
qualquer imperceptível ruído
ferirá o pássaro no ninho
entre memória e abismo
deus constrói o seu vazio
não escreverei mais poemas
sobre a beleza e a verdade
poetarei c/ o silêncio
essa máquina hiperbólica
capaz de captar e ferir a voz
mesmo sem despertá-la




Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 241


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

UMBIGO DO MUNDO


                                                                                                                        a Solange Costa
                                                                                                                       este raio de sol



os lençóis maranhenses
são mulheres das 1001 noites
banhadas em luar de cabra


cada vento escolhe seis donzelas:
esculpe os seios e os quadris
soprando-lhes a pele de nácar


sinuosa dança do ventre
as dunas se contorcem em lento gozo
os lençóis as camas as amadas


uma é navio; a outra: sereia;
a distante: corça reinventada;
aquela outra: sonho de kurosawa


as coxas os lábios as espáduas
são o vale cobiçado das estrelas
mas o sol já tatuou-lhes as nádegas


os lençóis maranhenses
são haréns de mulheres de areia
na tempestade de amor roladas


_estrangeiro: segue a estrada
desarma as tendas e o desejo
deixa-lhes a seda e a prata


que segredos guardam as azuis lagoas
olhos de líquida opalina
das aventuras da via láctea?


observai as pirâmides espreguiçadas:
no coração do deserto
só há oásis quando se é fábula




Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 411