sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O PARAÍSO REENCONTRADO






1
Namorada do Sol
Ventre do Céu
Coroa do feminino
Regaço da Existência
Cordão Umbilical do Ser
Elegância do absoluto
Provedora da Vida
Rainha de Éons
Pedra da Fundação do Tempo
Senhora do Azul
Celeiro do Mundo
Inspiração dos poetas
Árvore da Vida
Arco-íris Noturno
Mistério do Amor
Rio de Água-Viva
Misericórdia Infinita
Jardim da Essência
Natureza Naturante
Orquídea do Universo
Terra Firme

2
Aqui onde o espírito
sopra
lendas verdades e mitos

Ó Natureza
ouço a voz de Hölderlin
o sacrificado amigo
enlouquecido como um lírio

e peço abrigo
mergulhado
em contemplação

3
Preenche a taça
do oxigênio
rachada de adrenalina
cujos vapores
os elementos
em ebulição
sofrem em mim
os ciclos voltaicos
da criação

Abelha beijando
a flor
aspiro ao pólen
da ressurreição

Outubro: explodem
à mostra os rins
de cajus e tamarindos
rolando à superfície do chão

Quem inala o sopro
em minhas narinas
modela-me as formas
reinventa novo barro
humano cristal
em fabricação

Este corpo
é cansado
para suportar
o volume da verdade
o código do ser
a ira do viver
e range
sob o peso
da encarnação

4
Sou ruínas
despetalo em pedras
Holos-fragmento
vaso quebrado
espatifado de ausência

As quatro estações
da carne
aspiram ao sopro
quintessencial

Portal do mistério
enseado do inaudito
em cada dobra
de seus flancos
o pensamento da terra
brota o gel
do caos primordial
mesclando-se ao lixo
reciclado de infinito

A Terra
e a sua mitologia:
o antes e o depois
convivem
em meio
às contrações

5
O cordão umbilical
raiz de frondosa árvore
povoada de minhocas:
o canto das moscas -
verdes as formigas vermelhas
a pré-selvageria
dos símbolos e címbalos
a escrita automática
dos aromas

Cresço em metros
mas não percebo
os bichos os bichos
a hileia das hienas
(quando nasci
um cão mordeu-me
a passou-me raiva)

Grande estufa
de cérebros-falantes
e plantas carnívoras
(súbito
vi a cara de Deus
entre relâmpagos
e clarões)

6
Ó natureza + pouso as mãos em tua pele jovem
e rusguenta + A tipografia das casas imprime sulcos
em meus braços + Sinto o sexo roçar as árvores +
O sol com o seu chapéu de feltro incandescente
faz mesuras para me saudar + O veneno
que carrego na língua sequer destruiria
o vício da repetição +
Todos os mitos + preparação para o único +
Sou obra do bicho e do anjo quintessencial + mas é
em teu ventre ó nutridora que vejo a luz coalhar-se +
e retirar o arsenal da magia + rituais e sinais
de renascimento

O silêncio tem me enviado convites
c/ papel timbrado + reality shows do vazio +
pôster de florestas amazônicas e tibetanas +
mantras ecológicos + psicografia de ventos gerais +
pegadas de Tereza e carmelita descalça +
Espaço sagrado da consciência +
não penso + Sou existência

Que me respira germina a infância +
Ó papel desbotado de parede do passado +
Os grandes animais partiram + encarnaram na pele
dos seus exterminadores + Restaram as árvores _
a vocação dos totens + Os pássaros _ o caminho
para o alto + E as serpentes _ em seu
teatro de iluminação e queda +

minhas fronteiras
psíquicas
mal constituídas

pedem-me distância
dos ruídos
da vida

antes cultivava
a palavra
ávida de possibilidades

agora curto
o silêncio
grávido de identidades

7
Animal ferido
no 6o. dia
procuro meu nome
na agenda de Deus
perdida na criação

escolher
o sarcófago
natural

ou restaurar
o antigo
original

eis
a
questão

como retornar
à casa
se não concluí
a lição da alma?

frente às galáxias
e à vastidão cósmica
clamo ao tempo: mais
pelo relógio de Acaz!

8
ela a minha
solidão
foi a menor
de todas
sua virtude
foi ter
se auto-
diminuído

transformando
o mestre
em discípulo

foi a menos
negativa

a menos
desesperada

a mais
iluminada

a mais
compassiva

9
Bênção celeste
humilde te aguardo
assim como milho
sonha as lamparinas
e a palha do arroz
alastra ao que o fascina
Curvado em ofício de concha
poluída praia íntima
recicle a salvífica onda
o óleo queimado e as resinas
Vinde chuva de cajus
arco-íris de andorinhas
bafo de cuscuz
destruindo ervas daninhas
fôlego de luz
sob os pulmões em neblina
Cresci em séculos
de adrenalina
e o anjo c/ seus exércitos
anuncia-me a ruína
Bênção celeste
divinas narinas
dá-me o oxigênio das gaivotas
- beija-me boca a boca -
alinha-me à ordem cósmica
violenta-me c/ tuas crinas
Conclui teu pacto  - senhora
que em mim a natureza - flora
Se for merecedor
concede-me a liberdade
da busca da verdade
em sua expressão maior


10
Sou como Deus - rompidos os vasos - exilou-se
o aspecto feminino da minha divindade O vazio
habitará em mim até o reencontro c/ a Noiva qdo.
será restaurado o Templo de Plenitude

Vem energia de união
consumar a comunhão

Sob a luz do todo
torna-me vaso novo

Eu não mereço
mas a misericórdia
me entrega
e eu aceito

Não me pertenço mais + sou o primeiro Adão
inflado no sopro da terra + a consciência vestida
contemplando o umbigo do mundo +

habita-me
a primeira
lágrima
de silêncio


11
_ E a companheira?
"_ Busca-a no mundo
e a conhecerás
Ela se chamará
Eros-Philia-Ägape
o coração da humanidade
Será quem
te consolará"


12
Ah paraíso
reencontrado
te pensava
arquetípico
habitado
de uma estrela
de Íxion
ou
na constelação
do infinito
onde náiade
estelar
despe o mito

Te sabia
perdido
deslocalizado
por Milton
na supranatureza
escondido
no espaço quântico
do existido
lá onde
Cristo reintegrava
os discípulos

Havia esquecido
que o Criador
retirou de si
num ato compassivo
as flores
do seu melhor sorriso
decorou o espaço
c/ arco-íris e narcisos
p/ o homem
à alegria e ao gozo
estar unido

Onde era
esse lugar?
cada vez
se sequia
abraamicamente
pra mim mesmo
sinalizava o sol
novo berço
reinvenção
do começo

mas sob
a palma
dos pés
pulsava
(tatuada
nos dedos)
a estrela
do endereço

onde se escondia
o meu lar:
era aqui
ou ali
lá ou acolá
ou no próprio
caminhar?

mesopotâmica
senha
amazônica
brenha
planície ou
montanha
roteiro
de terra e ar?

Campo de visão
descalço
as sandálias
e invoco
o espaço sagrado
(onde arde
a sarça)
na camada solar
do coração


13
Ah paraíso
redescobrir-te
reinaugura
novo círculo
para brotar 
o sentido

Embora reconheça
q a lei da selva
tenha invadido
o jardim da promessa

e o poder do arco
submeta
o mais fraco
e a sanha do esperto
oprima o sábio

e corram entrelaçados
nas águas do mesmo rio
o fratricídio e o sentido

a água viva
batiza
a água pesada

e a esperança
reacende a aliança
c/ o milagre da infância

(perdemos todos 
os caminhos do jardim
menos as crianças
herdeiras da paisagem 
aceitaram a ternura
e nos redimiram
das engrenagens
da máquina de tortura
- estávamos nus
disfarçados na folhagem-
sorridentes entre pássaros
ofertam uma flor à humanidade
enqto. cobras e lagartos
esgueiram-se sobre a árvore)

14

porque se olharmos
com profundidade
dentro do homem
veremos a humanidade
dentro do homem
veremos a unidade
dentro do homem
leremos a divindade
no coração do homem
- o paraíso e a queda
e a reintegração -
dentro do homem

entre silêncio e ruído

desço à morada
do fogo interior
onde arde
a chama do amor
no mistério de tudo

15

belo é contemplar-te
ó unidade
ainda que engendres a arte
da multiplicidade
somos
areias
teias
centelhas
toda a criação

embora

o olho
não perceba
sabe-o
o coração

16

nem
sabedoria
nem loucura
nem
estrela-guia
nem
noite escura
nem
ipsilone
nem
ipseidade
nem
conflito
nem
serenidade
nem
clássicos
nem
quânticos
nem
excesso
nem
avesso
nem
vazio
nem
plenitude
nem
doença
nem
saúde
nem
sax
nem
atitude
apenas
o fluir
do aqui
e agora
além tempo-
espaço
além
das horas

17

Urinei nas mangueiras
e em todas as árvores
da infância e adolescência
que me seduziam
a força dos rins
Vira-lata em trânsito
marquei o território
à sanha dos predadores
erguendo-me sobre as patas
no dilúvio do jardim

Meu exercício secreto

desenhava chuvas
líquidos itinerários
círculos sagrados
recitações fluviais

E confesso aos ventos

um sonho de maturidade
beber o orvalho de pétalas
e regar a grande árvore
dos jardins dos céus

18

Salvei a ira
para o encontro
com Deus

tentaram comprá-la

cesta
de pães e peixes

ou par de sandálias

no mercado
da verdade

devo a ela

(secreta pérola)
o ingresso
(sem subornar
a minha alma)
assim espero

aos umbrais

da
eternidade

(recado do vento:


onde mora

a raiva
transcorre
a seiva
morre
a larva
nasce
a borboleta)

19

piso c/ cuidado
o solo
dos antepassados
onde foi vertido
o sangue
do imaculado

caminho

lado  a lado
dos espíritos
dos santos
loucos e heróis
martirizados

descobrindo

passo a passo
o significado
q tudo é sagrado
sempre
cocriado

e a luz

q escreve
os ciclos
enfrentando os perigos
faz o amor
romper o castigo

20

sou o nome
o prenome
e o sem-nome

o samsara

o satori
e o nirvana

céu e terra

sol e lua
estão em mim

engendro o belo

o feio
e o terrível

nasço e renasço

nos ciclos
dos mitos

e habito

poeticamente
a existência

21

Conversas c/ a Terra
(depositando flores
no túmulo do poeta desconhecido)

afora os filhos

raros amigos
alguns amores
(muitos clamores)
estranhos mestres
(o excesso e a carência
e toda a não ciência)
meus companheiros
de viagem
nesta jornada-terra
neste desejo-vida
além do espírito
minha morada
no infinito
e a poesia
caminho
da mais-valia
foram a xícara de café
o pão a fruta
o jornal diário
os autores relidos
(os pintassilgos
cantando no umbigo)
rostos solidários
gestos compassivos
a partilha da utopia
a solidariedade coletiva
encontros extraordinários
(às vezes um mendigo)
passeios à beira-mar
sonatas à solitude
epifanias da unidade
secretas transgressões
árvores que não plantei
letras e músicas
q cantarolei
e não mais sei
(um pingo d'água
é o começo do rio)
os filmes da tarde
os quartos de hotéis
a liturgia das horas
os sapatos macios
e a descoberta do vazio
tudo foi oportunidade
de beleza e verdade
(e o discernimento
de que na vida
como no texto
todo fim
é recomeço)
no fundo
só o amor
contou
e o que faltou
o vento
modulou
à melodia interior
O sentido
da minha vida
encontrei-o
na aceitação 
de que tudo foi
maravilhoso 
jamais estamos
desacompanhados
e somente
o sentimento
torna-nos felizes
e desapegados
à vida nascente

22

Graças ao eterno
foi me dada
a experiência
de cruzar o inferno
pássaro de asas arrancadas
descalço pisar em brasas
sol furando os buracos
romper a máscara
e entre os cactos
do deserto
tornar-me
um livro aberto.





Luís Augusto Cassas

In A Poesia Sou Eu, vol. 2,  p.577




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