sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

ODE (QUASE) LOUCA






1

Decididamente
deve existir por aí uma mulher
manequim 42  sandálias 38  náufraga de luz
vaga inclinação para hot-dogs e filmes de Fellini
sem compromissos maiores que não seja o amor
Ela está estendida nua no tapete da sala de estar
e secretamente (sem que Dylan na vitrola perceba)
alisa lentamente as rosas do púbis
pensando na imagem de um poeta que a excita
Possivelmente um poeta que os críticos taxam de louco
desses que os pais de família chamam de irresponsável
e os executivos fazem aguardar nas antessalas
(como a flor de plástico
que desabrochará no jarro)
avesso a cortesias e gravatas italianas
mas cúmplice de todos os carinhos
capaz de exterminar o estoque de rosas vermelhas
dos restaurantes e floriculturas
e doar (por intrépida doçura)
as cerejas de todos os martínis doces
Ela está só e esqueceu a identidade burguesa
o vestido francês o concerto de Shankar
e passeia (na imaginação) por verdes pradarias
como uma égua servindo-se do seu cavalo
No cenário nu que a rodeia
o ketchup e o vidro de esmalte vermelho
derramam sangue sobre o tapete da sala de estar
É uma corça ferida de desejo
no entanto  o seu desejo não está só

2


Decididamente
deve existir por aí  uma mulher
estátua viva do mais puro mármore
musa de mil tentáculos  especialista em naufrágios
vaga inclinação para as causas mais secretas
sem compromissos maiores que não seja o amor
Miss noite  mademoiselle fúria
(está só nesse instante em que pisco os olhos)
na janela do apto. em frente
o bico do seio (como um diamante
ferindo a vidraça)
enquanto durmo e sonho acordado
(com a aurora do seu ventre em chamas)
desperta em seu quarto na América
e envia os sinais lânguidos de leoa acossada
para a selva do meu quarto de dormir
Decididamente
deve existir por aí  uma mulher
que me ensine lições de abismo
(e me atualize o desejo tempestuoso do amor)
que me toque tão profundamente
(como a brasa acesa toca o cigarro)
que me dê colo e transcendência
(e me fale de Deus e sexo
Henry Miller e S. Francisco de Assis)
e responda a questões urgentes do meu ser
(não com mensagens de sua boca)
mas com palavras quentes de todo o seu corpo:
o amor é uma turbação?
é uma perturbação?
uma revolução?
uma realização?
um desejo etéreo?
um mistério eterno?


Como compreender o instante e a eternidade
de amar a terra e o céu ao mesmo tempo
se tenho amado quem não quero
e não tenho amado quem quero?
Se meu corpo faz o que não pretendo
e a minha alma regozija com o que não posso?
Se o gozo das coisas do alto
eleva-me o desejo das coisas de baixo?




3

Esta noite  Deus (em sua misericórdia)
perdoará o excesso de fragilidade humana
e descontará a minha fatia de céu
Mas ainda que me fira a carne com todos os espinhos
Jejue mortifique-me e veja os sinais da queda
tudo será em vão
Hoje meu céu está na terra
e o desejo é o meu único pastor
Quero escorregar como um sol de abismo
e no leito da noite  num corpo de mulher
descobrir o paradoxo de todos os mistérios
desnudar a plenitude de todos os fracassos
e nas curvas sinuosas do seu corpo
acender as estrelas da Ursa Maior





Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 324
Imagem: pintura de Modigliani





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