quinta-feira, 27 de março de 2014

A NOITE ESCURA DA ÁGUA




1
cuidado com a água parada
pra que não a cultivem as larvas
e o mal em bolhas chocado
o inverno atraindo o inferno
em larvas queime o cuidado
porque o amor não é amado

sob a água sob a terra
úmido empoça o passado
multiplica-se o olvido
à luz do sol coagulado
surge o lago putrefato
porque o amor não é amado

articulando a linfa
a profundidade empalha
reproduzindo os miasmas
suspira na água afogada
o coração asfixiado
porque o amor não é amado

bastaria uma palavra
anticoagulante e alga
ou a luz da estrela d'alva
constela-se o espelho em névoa
acende velas a treva
porque o amor não é amado

mas onde o amor é amado
brilha o mistério da alba
lava o espírito o intelecto
ressurge a vitória-régia
no coração do regato
circula o céu entreaberto


2
minha santa depressão
padroeira da escuridão
que preces rezas ao coração:
"...amar demais é em vão...?"
ouve a santa compaixão
na liturgia do perdão:
"...os outros amar como são..."
"...amar jamais é em vão...!"


3
quando os ventos do verão
enviarem-me as folhas mortas
quando o antigo caminhão
despencar na fria encosta
quando a sombra da emoção
derramar como compotas
_ despejando ao rés do chão
mágoas medos e suas polpas _
desperta: é a revisão
que gentil te adentra as portas
acolhe-a no coração
curva-te à sábia proposta
findo o prazo à correção
choverá em tua horta


4
compaixão eis teu mercado de trabalho:
orfanatos feiras penitenciárias hospitais
horas extras c/ creches e extraviados
plantão a marinheiros de último naufrágio
mas guarda minuto de precioso tempo
àqueles privados do sol da própria casa
liberta-lhes o fogo trancado nas gargantas
deles o sopro inflará tuas narinas
lançando-te ao oceano mais profundo




Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol.2, p. 285



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