quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O FILHO PRÓDIGO, UM POEMA ESCRITO A PRANTO DE OSSO




Platão, o sacerdote da beleza, afilhado de Apolo, o deus da luz, era preguiçoso e foi vendido como escravo. Louco, acompanhava outro louco, pelas ruas de Atenas: a "mosca errante", Sócrates. Tinha inveja de Homero e o expulsou da República. Ele que conhecia a senha da imortalidade e elaborou sua filosofia inspirado no semântico tripé das palavras beleza, justiça e amor, padeceu de estúpida fraqueza e investiu contra Homero, o rei dos poetas.

O selvagismo do preconceito contra a grei dos rapsodos data talvez daí, da Grécia de Platão. E o que mudou não mudou. Nós, os poetas, somos os artistas do ócio, nutridos sobretudo pelo ópio da preguiça, conforme interpretam os endeusados de gravata, mandantes da revolução industrial-materialista; esquecendo-se de que foram os poetas que alimentaram, primeiro, o espírito contemplativo e perscrutante dos filósofos, na antiguidade. E quando a filosofia se ateizou, a poesia continuou a alimentar o sentimento do mundo, através das línguas de fogo dos poetas. Diante de tal realidade desoladora, que indica a falência da poesia como instrumento de catarse da mente humana, só me resta perguntar aos silfos se é preciso que nós, os poetas, leiamos nós mesmos para que tal ofício não desapareça das páginas da literatura. 

Certo? Errado. Só uma coisa neste planeta movimenta a alma dos homens, a poesia. Que dá voz à voz de outras vozes. Luz parida pela inocência da própria luz. Centelha que fecunda fulgor e depois é constelação. Pois que, então, pode-se dizer que o poeta é um ser antenado entre a magia de duas realidades: a linguagem e o mundo. E reflete, portanto, na essencialidade epicêntrica de sua obra, o nada antes dele e o nada depois dele. Amor e liberdade andam juntos, acoplados à genial fantasia desse ofício: o de explorar os domínios subterrâneos do sonho, através da palavra. É o mergulho da paixão cantar e ser poeta. A poesia ilumina a vida. Acende lumes no rosto ilusionista das coisas. É mistério e realidade.

É o que faz, sôfrego e ardente, o menino cinquentão Luís Augusto Cassas, desde a rebeldia de suas primeiras emoções em lutar corporalmente com a palavra, desrespeitando os silvos e semáforos fechados, para chegar aos umbrais da eternidade, troando a poesia República dos Becos (Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1981), seu livro de estreia, que o inseriu definitivamente no cenário da poesia brasileira.

Eu o conheci aqui mesmo, sobre o calor desse asfalto do cerrado goiano, nos meados dos anos de 1980, quando éramos ambos entrincheirados pela loucura rimbaudiana dos sonhos. Queríamos porque queríamos mudar a rotação cósmica do homem e seus desígnios de mortal,  para o grande Éden, os respiram as delícias do devaneio. Éramos, portanto (e ainda somos) os pedreiros da metafísica: a boca cheia de sol e o verbo contra a podridão da vida. O Cassas às vezes Iorquiano, às vezes maiakovskiano, do povo, no permeio do povo, como um profeta, ele e sua cornucópia de lirismo; o pródigo de volta, afetado espiritualmente pelos tormentos da eterna luta entre Ormuz e Arimã, explodindo em fagulhas ao retorno da luz.

A poesia desse vate tresloucado sempre me causou estranheza e assombro, pelo ácido humor de suas estripulias com a palavra sustentando a elegância imagética de seus versos. O que o transforma num clássico gozador do barroco e do épico, do burlesco e do erudito; eletrizado de amor e tesão quando copula com a quimera de suas musas, no etéreo da psiquê ou da carne. Ínsito a essas aventuras de piruetas com a linguagem está a elegância do seu texto, em miríades de faces e emoções de originalidade e dor. Porque o belo, em poesia, que não dói, não é belo, é casca, máscara de areias. E a poesia que não provoca poesia, não é poesia. Pois que perpetuar o sopro da beleza é a sua função; ir além do efêmero, dissipando-o no tudo deste nada, para o que viemos, e não somos nada, além de urina, solidão e grito. A natureza da criação artística, sim: fala tudo. E o Cassas sabe disso, tanto que é um poeta frequente, de pé, absolutamente antenado com a universalidade dos temas, - se devaneico, infernal, satírico, lúdico ou místico - o corpus de tudo no singular-plural de sua visão é o que importa: solidão em núpcias com o fogo da quimera.

Lúcido mediador entre o medíocre e o frugal, a santidade e a luxúria, o jubiloso e o tétrico, o poeta do sol é ácido e mordaz, às vezes bruto, como eu gosto, mas rebelde e belo e também manso como um filhote de rouxinol.

Feliz desse maranhense de São Luis (onde nasceu em 2 de março de 1953), que tem como vizinho de seus olhos escancarados para as imensidões do infinito, lá onde Homero é o sol e Safo de Lesbos é a lua. Essa pira que arde e lhe e lhe purpureia poesia, enquanto o insula solitário, a palmilhar léguas de areia, tangido pelo encanto aterrador oceânides - cujo sementeio lírico já chega a quase vintena de livros - traduzindo o seu altíssimo espírito de fidelidade para com a palavra, esse divino tijolo de luz, deslocando-a, com invejável primazia, para dentro de sua morada eterna; o coração do texto, bafejado pelo orfeico sopro da criação.

Ele, que já desceu às plagas infernais e retornou transfigurado à praia, nos faz agora, com este O Filho Pródigo: Um Poema de Luz e Sombra (Imago Editora, 2008), passageiro de nova aventura cataclísmica em redor da mente humana. Cassas, o filho pródigo da poesia, é também a própria matéria prima neste filho pródigo de volta ao aconchego da paternidade. É um livro louco, freudiano, espiritual, dramático, fúnebre e lírico em direção ao cimo do grande Zen, a catedral do íntimo. 

Nele, Cassas - cuja arte o faz luzir acima dos seus demais congêneres, bruxos da poesia - explode inteiro. É o profeta de si mesmo, crucificado pela nostalgia da razão absoluta, todo empapado de pavor e lirismo, acendendo os archotes teologais da esperança, rumo ao canto do retorno, a Casa do Pai, seja lá onde for, se no Planeta do Sinai, ou no lampadário das galáxias, onde o sol é azul. Ruptura e volta. Remorso e ressurreição, marcam a angústia deste retorno à paternidade do colo planetário sob o trono das nuvens, na floresta das sombras.

A poesia desse atlântico ribeirinho nega, perscruta, canta e exalta. Ensina o homem a sentir com didática emoção. O pensamento vem depois do incógnito infinito para as mansões do etéreo. A palavra é o veículo, a roda da linguagem. Entra no corpo inteiro das águas desse pretenso e filosofante conceito de poesia, que o mestre Aristóteles chamou de mímesis, imitação da natureza, retórica do espírito.

Enquanto anjo órfão, perdulário, que trava solitários solilóquios com as pernas do pai, no fogo das lembranças, alando-se de tristezas à morada do poema, endereço metafísico para o qual foge, após 40 anos vagando em círculo, de périplo em périplo, pelas águas da frustração, à procura de Ítaca na alma, com "pétalas de sangue" brotando-lhe dos dedos - o filho da bruma flerta com a maldição, mas despetala também rubro ramalhete de jacintos sobre o paul das trevas, com sua "roupa de gaivota"a  inquirir o inescrutável "poder do incognoscível", sabendo que a vida é "o bueiro dos mistérios, sob o sol da via láctea.

O Filho Pródigo portanto, do Cassas, é um poema escrito a pranto de osso, doloroso, rilkeano, angelical, satânico, litúrgico e filosófico, onde indagações do sangue e da alma se transmutam em corpos de pai e filho; um na viagem do outro, de volta (e revolta) ao Paraíso, da maçã proibida pela mentira dos séculos.

Percebe-se, então, a partir daí, que, no âmago do discurso emocional-conteudístico deste autor, está o retrato de um homem assombrado, atônito; e que pede tréguas, resposta aos ícones da mitologia, aos oráculos e até à soberana luz dos astros, em comunhão de íntimos mistérios com as pulsações do universo. O tempo para ele, de jangada a navegar, deflagra o sentido das coisas e do sentimento do mundo, mas sobretudo, embeleza-o, em seu fluxo lírico do fluir dialético e eterno.

Cumprida a missão, trombeteia o vate na portada do seu trágico e amoroso cântico, de preito ao pai: "dissipados os véus, diante do trono: o Múltiplo retorna à Unidade". 




                                                                                                              Gabriel Nascente







GABRIEL NASCENTE



Nasceu em Goiânia, Goiás, em 1950. É autor de duas dezenas de livros de poesia que a crítica especializada recebeu com entusiasmo e que mereceram prêmios e reconhecimentos.
Seu INVENTÁRIO POÉTICO, de 500 páginas, publicado pela editora Alternativa em 2006, revela uma obra copiosa e vibrante que começa com Os Gatos, em 1967, e culmina com A Dança dos Relâmpagos (2003) mas que seguirá na plenitude e na maturidade de sua inquieta criatividade. 






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