sexta-feira, 20 de junho de 2014

BALADA NEGRA




1
Anjo decaído meu
esplendoroso príncipe de alcatraz
melhor seria não te conhecer pessoalmente
e relegar-te à escuridão do jardim interno
Mas se me escondo e fecho a porta
fazes um louco pandemônio
retornas com o teu séquito de angústias
ateias fogo no tapete
afugentas os pássaros da garganta
e torno-me um polichinelo em tuas mãos


E te vejo em todos os lugares
no semáforo das esquinas
nos anúncios das vitrines
nos letreiros das boutiques
na tábua de frios dos restaurantes
Até nas tábuas da lei
te introduzes zombeteiro
nas páginas do missal romano


Anjo decaído meu
inevitável te conhecer: 
portanto (o que fazer?)
muito prazer


Dentro de mim borbulhas no sangue
celebrando a minha parte corrompida
e subtrais os rios do Éden
teus combustíveis de alumínio líquido



2
Quando eu captava o mundo
pela impressão colorida dos 5 sentidos
estavas comigo
Quando celebrava os signos da matéria
estavas comigo
Quando o intelecto se rebelava na consciência
estavas comigo
formando rica matéria-prima
para os confessionários das igrejas
e os consultórios dos psicanalistas


Cativas-me com teu cativeiro
tua energia de alta tensão
exaltas-me os sentidos
para a posse e a paixão



3
Na divina comédia da vida
és o ator mais procurado
mesmo quando escondes o rabo
e mostras sob as gambiarras acesas
a tua face de raro esplendor


Mestre de negro humor
saltimbanco de ópera bufa
Príncipe dos deserdados
tua maior glória é esta:
ensinar que na fraqueza do divino
está a ascensão do humano


Vê: todo o território
até onde o olhar alcança é teu:
a paisagem que não é de Deus
Não foi a ti que nos confiou
a piedade divina
Como então zelas e proteges
guardas e iluminas?



4
No reflexo do espelho
vejo que os desejos de apropriar possuir seduzir
são as chaves do teu reino
e nele gravito incandescente
(paraquedas chegando ao chão)
por mais que esfregue a pele da alma
e lave a consciência com sabão


Ah teu paraíso é feito
das delícias do humano
dos escombros do divino
do gozo do profano
de excremento dos anjos
das impurezas do branco


e nele ficarás até o final dos tempos
rondando os templos
como o cão de guarda
defende a casa


essa é a receita da serra:
a contrapartida da terra!



5
Anjo decaído meu
porta do inferno
sol da eletricidade
estrela do egoísmo
arco-íris fendido
arco da lamentação
luz dos orgulhosos
seta do desânimo


agora que te conheço
renuncio às tuas obras
agora que me conheço
renuncio às minhas cobras
indigesto foi comer o pudim de sobras
doloroso dizer: mas valeu



6
Do inferno e sua alfaiataria
não me visto mais
Agora visto a roupa do eterno
e a sua profunda paz








Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 373


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