terça-feira, 22 de outubro de 2013

A CAVERNA DE PLUTÃO



1
Todos têm direito
ao arco-íris:
apenas os fortes
os loucos e os profundos
são os escolhidos
para ler a escuridão

2
Jamais ergas pontes levadiças
para não ouvir o coração
Entroncamento ferroviário fábrica de enigmas
o inimigo é quem convida ao silêncio
Por que levantar rutilantes escudos
contra a invasão do sol vermelho?
Pensamentos são espadas Abrem clarões
Penetra no reino dos ruídos:
lá encontrarás as múltiplas vozes
que celebrarão o êxtase da agonia
Tua única glória é estar vivo
Onde o silêncio pasta — camisa-de-força —
encontrarás a ausência do conflito
 desnecessário à angústia da existência
Ferve o sangue para a revolta:
tempera-o no fogo das fermentações
Não terás paz É verdade Mas o que é essa paz
senão a cessação do pulsar da vida
o cemitério do desejo
o deserto de toda recordação?
É na azáfama diária
na conferência do caos e do sublime
 no intervalo do beijo e do aniquilamento
que a tua carne beliscará a vida
Convoca os deuses ao teu leito
Serve-lhes absinto A verdade é luto
Nessa hora agônica Deus
 descansará dos frutos
E a solidão a grande solidão
é a única invenção da criação

  
3
A Morte — não o discurso sobre Ela
a Óbvia a Escaldante a Extasiada
que nos leva rútilos ao parque dos ossos
Falo das pequenas excelências
melhor dizer ilustríssimas as carentes
que sucateiam nossas carnes pânicas
e exibem a coleção de fracassos
na passarela das mais puras convicções
Elas as minúsculas as preparatórias
que carimbam os passaportes de viagem
e nos remetem à sagração do abismo
para o jogo olímpico do gozo e da fúria
Bem-vindas sois dançarinas flamencas
ao tédio de toda ansiedade
Girai os tendões de vossos pés
sobre os cadáveres da falsa bondade
e dançai ao som das flautas-tíbias
onde a flor expectora a eternidade
Arrancai os olhos ao pedestal da força
celebrando o fracasso da perfeição
Consegues sobreviver à Grande-Morte
vivendo a morte da transformação?
Dissipa o treinamento do lamento
e enfrenta face a face a desolação
Só quando carregares o cadáver
de tuas falsas esperanças
terás te libertado da ilusão
Rouba ao céu um buquê de estrelas
segura a mão do imprevisível
e abandona a bagagem na estação
Ainda que flores de insânia
desabem da casa de infância
segue adiante Eis o grande mar
Só novo pecado nos renascerá


4
Nenhuma novidade
encontrarás na luz
A pupila gasta o sonho
na gilete do sonhado
A não ser que desças
a sete palmos de noite
 miragens te propiciarão
o pesadelo do imaginado
Toda luz é ocultação
O que te cega
é o excesso de claridade


5
Senhores recorrei aos arcanos:
 ensino-vos a abrir oceanos
 Lançai fora todas as chaves
e girai a que abre pra dentro
Eis a Nota-Sol o Em-Si-Lá
a grande chave o Eu-Centro
Adestrai de presto a lírica:
a vida real é mais criativa
que a ficção científica
Riscai ao redor um círculo mágico
e evocai o poder do trágico
Sou Oroboro o Rei-de-Ouro
que fechou o círculo do fogo:
abriu o segredo da Flor de Ouro
e tornou-se o Sol vindouro
girando rabo e boca ao tesouro
as larvas cozinhando o ovo
Sou o Misantropo e o Minotauro
o Dinossauro e o Pitecantropo-Outro
o Centauro-Pavão o Galo-Ígneo
que purifica a luz do olho
dinamitando o Bezerro de Ouro
Sou o que recicla os mitos
fecunda os astros e floresce a flor no lixo
 preparando-te para a luz do Espírito
 sem o qual serás submisso
Por renegares o teu negro ego
vagarás 40 anos no deserto
 Teu sol deixará de ser cego
então irromperá o fogo amarelo
Enquanto não aceitares tua escuridão
 o mar não se abrirá ao coração
Até lá treina tornar vinho em água
 abracadabradacabradacabracadabra


6
Ah Tirésias Tirésias
 Empresta óculos-laser aos sensíveis
Protege-os das insolações infernais
e da corrupção da lei astral
Ai os sensíveis os sensíveis os sensíveis
Fácil é identificá-los faróis baixos
na fila de pão doce das padarias
A psicoterapia deles é o olho derramado
Feridos oferecem a outra face
até o massacre total
Delicados instruem a família
a enviarem santinhos na missa de 7º dia
Por carregarem um coração puro
são os mais castigados por Deus


7
Somos aquilo que morremos
Sê teu próprio antídoto e veneno
Abandona o roteiro do animal ferido
rumo ao último repouso
Jamais te tornes a lata de lixo
de tuas ultrapassadas crenças
As muralhas das costelas pedem destruição
mas o templo ressurge ao terceiro dia
O que vulgarmente chamas livre arbítrio
é a terceira dimensão da solidão
Tudo o que não flui pleno
retorna de mais ou menos
Vive a plenitude da realidade
e abandonarás o resto pela metade
O buraco negro da existência
é a luta do sonegar e partilhar da luz
Como trazer fogo à consciência
senão com a fricção da experiência?
A cada morte sobes mais alto
buscando oxigênio na raiz
Estranhos são os salões de beleza
do renascimento O mistério da morte
é o perigo de tornar-nos mais belos


8
Todos nós fracassamos
Mártires e virgens fracassamos
Anjos e demônios fracassamos
Revolucionários e revoltados
Mendigos burgueses potestades
Fracassamos Fracassamos Fracassamos
Menos você sexo: flor do desejo
Prima-dona da agonia
Angústia do divino Êxtase do caos


9
Rasga dogmas profecias livros:
tudo precisa ser reescrito
A vida é pessoal e intransferível
Deus: uma aventura excepcional
Cada experiência — uma ciência
Da escuridão — vem sempre o clarão
 Do arco do triunfo do peito
lança à verdade a seta mais funda: a emoção
 Imagina se igual ao movimento do mar
a vida estiver no devido lugar?
Da tensão entre arbítrio e destino
está o ponto de transmutação
Quem sabe se a súbita revolução
é aceitar pessoas e coisas como são?
Jamais interceptar o vir-a-ser
do ser plasmado a acontecer
Aclara o relâmpago do impulso
e corta os pulsos da dissipação!
Só algo resta a ser transmutado:
a ilusão da iluminação


10
Vem noite
com o teu agasalho de estrelas
o teu vestido de mulher morena
o teu perfume de aloés e noz-moscada
Restabelece o mistério dos deuses
Resfria a minha pele corrompida
Lava a minha dor eterna
Expulsa o invasor diurno
Cura o coração incendiário
Sobrevive meu olhos ao holocausto
das ulcerações do Sol


11
Quebradas as tábuas dos princípios
 vivemos sob o signo do precipício
Só o amor explode o inferno
faz em cinzas a discórdia
e veste a temporada do eterno
Na proporção da profundidade da cova
ascenderás à vida nova
Aceita a morte Busca o abraço da vida
A morte transforma a vida
mas a vida despacha a escuridão
A morte pesa tonéis A vida
sempre é luz no início e fim do túnel
Jamais a constelação do Dragão
ofuscará os carneiros do Sol
Por que dançaste às sombras dos abismos
é necessário polir o corpo nas estrelas
Do veneno transmutado ao escorpião
esculpirás as garras do leão
que plasmará na águia o coração
Conclusos estão os trabalhos de parto
 da oitava superior de Marte À postos
Sonâmbulas as carcaças dos dinossauros
ressurgem o ouro azul das utopias
Não há patos na Patagônia
tarzãs na Tanzânia babéis em Babilônia
A Morte é insônia Convoca
Vênus Netuno e Urano E sonha


12
Nada há mais a fazer
Agora é ser





Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 539


Nenhum comentário:

Postar um comentário