terça-feira, 22 de outubro de 2013

A QUINTA CHAGA




Aos amigos Leonel Araújo Lima, Zeca Belo e Alberico Carneiro, companheiros da flor-de-lis metálica no coração



Eis o caminho das espadas
que o Mar Vermelho abençoou
na constelação das coronárias
Taça de vinho tinto derramado
 na toalha branca do sacrário
sou a ceia devorando ervas amargas


Víscera sagrada estressado músculo
ovelha imolada templo do crepúsculo
sol de Hiroshima bíblia de Abel
palco da chacina açougue do céu
bala de canhão dos doze apóstolos
 UTI da paixão de todos os sós


Morrer pela cruz ou pela espada?
Arrancaria do peito a bomba-relógio
e contra a turba arremessaria a granada?
Metralhado ostentaria estrelado
os buracos do céu em adoração
guerrilheiro da magia sagrada?


Ave quinta chaga de Cristo:
o serafim científico executou o rito
de angioplástico gozo: projétil metálico
Ante-sala da iniciação — stent no coração —
fuso a fuso parafuso a parafuso
penetraremos no paraíso?


Buraco de agulha — eis a porta estreita
da artéria — chave da compaixão
Por esse buraco passaram e passarão
Franciscos e Pios o vício e o perdão
Nos canais interditados das veias
navegam uníssonos o mau e o bom ladrão

Vede os estigmatizados da razão
 e o mistério decepado de asas
Ninguém transformará em devoção
 os estigmas dos endurecidos corações
clamando onipresentes à rigidez do músculo:
— “afastai a pedra do sepulcro!”


Venerado com catéteres e adrenalina
 o corpo cambaleia nas estações
Ora a nicotina: “ópio do povo /
 vício do todo / cinzas de maria”
A serpente com as presas de metal
 envenena-me com a seta do aguilhão


Na caverna do peito — fenda
da rocha — o poço da paixão
3 da tarde: as angustiadas badaladas
da máquina gritando manutenção
Arame farpado: a chaga da terra
a natureza submetida à corrupção


Ferido por minhas próprias transgressões
 dilacerado pelos meus pecados
minhas feridas jamais me curarão:
pingue nelas o sangue do crucificado
Quem reerguerá esse templo de paixão
consumido em desejos e desolação?


Consagrei o corpo em flor
às obras em suor do amor:
mão direita — realeza
mão esquerda — beleza
pé direito — profundidade
pé esquerdo — busca da verdade


Mas o coração milagre da criação
sofre o abalo da gravitação
a queda da eterna árvore
Entre o elástico e o esclerótico
lançou-me o peito a um voo egoico
— estreito céu — fatídica ave

Extenuado em vasoconstrição
 quem reconciliará meu coração
com a senda do amor e compaixão?
o crucificado sursum corda
alargará os afluentes envenenados
jorrando sangue e água da misericórdia


Ser conduzido pela claridade
aprender com a fonte a sobriedade
como o lírio curvar-se à castidade
eis minha precária humanidade:
a água condutora de eletricidade
fogo espalhou à chama da vaidade


Celebrei-te ó fragmento
 sob as colunas do templo
Prisioneiro do tempo e vento
 ergui-te fáustico monumento
Hoje ardendo em fragmentação
 aspiro ao sol da união


Desta sexta-feira sou o crucificado
clamando ao meu anjo os seus cuidados
Coração novo Caminho novo
Cântico novo Mundo novo
Complete o céu a grande obra
de quem na vida suportou ígneas provas


Do amor a via sacra negativa
seja transmutada a chaga em água viva
Pai glorifica os meus fracassos:
no peito habite o sagrado pássaro
Ó mangueiras do Sítio do Físico:
sobre vós derramo o meu espírito


OFERTÓRIO

Quando fores a São Luís aquece o teu coração:
enverga a jaqueta gris e leva a flor entre as mãos
Indaga à rua do Giz e aos sabiás de plantão
pela alegre codorniz que morreu de solidão
Chama um menino feliz do Coroado ou Pespontão
pra abençoar a cicatriz e dar asas à rejeição
Quando fores a São Luís ajoelha-te em oração:
encontrarás na Matriz meu corpo de ressurreição!




Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 550


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