segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

UM AUGUSTINHO PÓS-MODERNO E SUA ATRAÇÃO PELO TODO

Marco Lucchesi e Luís Augusto Cassas



Caminho com Luís Augusto Cassas pela praia do Calhau.
O sol de São Luís não admite concessões. É como a poesia. Ou tudo ou nada. E uma conversa que cresce em espiral. Como a concha de um nautilus. Ou a de Afrodite. A de Botticelli. E as que vemos nesta praia.
Um domingo de junho. E uma catedral submersa, onde o padre Vieira prega no fundo do mar a conversão dos peixes no Paraíso secreto das águas.
Cassas decide recolher o sermão aos peixes, a espiral do nautilus e o rosto de Afrodite nesta manhã de domingo, que parece não ter fim.
O Cristo-peixe é infinito. E o mar é um domingo de esperas.
Vejo a obra reunida de Luís Augusto Cassas. E me espanto com a população que habita seus livros. Uma demografia incomum. Toda ecumênica. Cheia de beleza. E frescor. Mais de uma praia. E mais de uma cidade. O mundo e a redescoberta de sua grande poesia. Uma das mais belas que se escreve hoje no Brasil. E das que mais me comove. Algo de Apollinaire. Algo de Blaise Cendrars. Mas tocado pelo tempo atual. E com uma síntese toda sua, uma linguagem toda sua e um acento inconfundível.
A poesia de Cassas nasceu como Minerva da cabeça de Júpiter. Grego equinocial. Cidadão do mundo. Amante do corpo e do intelecto.
Saúdo a impureza de Luís Augusto Cassas. Tal como as águas cheias de sedimento fluvial que deságuam nessa mesma praia do Calhau.
Luís Augusto Cassas jamais poderia ser o poeta da razão pura, asséptica, de tampa hermética, fechada a vácuo, ou simplesmente uma república de aduanas impermeáveis e intransitivas.
Posso definir sua poesia como sendo a crítica da razão impura, dentro da porosidade do sim, ligada a todo um processo de mixagem, de quem saúda e acolhe a coincidência dos opostos na corrente sanguínea da poesia.
Estamos na dimensão impura, ao mesmo tempo líquida e sólida, nítida e incerta, escura e luminosa, sacra e profana. Não como campos excludentes, mas como formas de conceber a transição.
E sobe as ladeiras do tempo e as de São Luís com a mesma desenvoltura com que desce a rua da Paz — íntimo da Tábua Esmeraldina, que afirma a semelhança das coisas de baixo com as de cima. E abraça a totalidade no fragmento — que o redime da atração, do desespero e da saudade que sente pelo Todo.
Para Cassas, o universo é uma teia de correspondências, em que as pedras e as estrelas se comunicam sob os céus do Maranhão ou de qualquer parte do Globo. Como se buscasse a espiral de Deus. O nautilus invisível.
A razão impura é como o Livro de Dante, que concentra em suas páginas tudo o que no universo vai desgarrado e perdido. Cassas sonha com este livro e sua obra reunida não deixa de apontar para a unitotalidade das coisas que o cercam no sonho e na vigília.
Conversam as pedras e as estrelas de São Luís. E a chuva secreta dos astros. E as cartas do tarô. O universo é ecumênico. E a soma de tantas abordagens reflete a nostalgia de uma unidade perdida, as ruínas de Babel e de Alcântara que a sua poesia — a de um náufrago de Deus — tem como princípio restaurar. Todos os casarões que se perderam. E as sacadas. E os amores. Assim como a beleza solitária de uma Torre que marcou o fim de uma idade de ouro.
E Cassas é este sobrevivente pós-moderno de Babel, o DJ de Deus, o trapezista luminoso de um circo de palavras, perdido entre alturas e adesões. O universo é como um iPod. E Cassas busca o modo de fazer o download de alguns resíduos de Deus que vagam no ciberespaço. Além da pedra. Do sonho. E da estrela. E o livro do mundo precisa ser lido. Tudo aquilo que diz sem dizer. O espaço entre as palavras. O branco da página. O desenho do abismo na vasta superfície.
Temos o poeta da cabala do visível, que sai do papel e vai para a vida — nunca saiu da vida este poeta nietzschiano, atrevido, apaixonado às últimas consequências. O corpo é o seu meio. A sua leitura. O seu risco. Os seios de Afrodite. Os olhos de Leda. E toda uma arte combinatória em que a virgem e a prostituta cumprem uma latência de beleza e mistério. E soma e divide as letras. Descobre o céu que as gerou, com setas, arqueiros, aquários, abismos e ceias luminosas.
Eis por que sua razão é impura. Elege o ser em sua equivocidade. Nas tantas manifestações em que revela seus segredos. O e-mail de Deus para Cassas não tem antispam. E sua obra reunida é um e-mail inteiro, um só arquivo anexado, que serve no plano da imanência e da transcendência.
O céu não sabe de aduanas.
Donde essa poesia cheia de força. De mística. E de razões políticas. Mas da política da poesia.
Um permanente j´accuse como um profeta do antigo testamento no seio da modernidade. O drama da figura do Pai e da piedade do Filho. Uma telemaquia de Cassas à procura de Ulisses. A espera do Pai. E do futuro. E do filho pródigo. E a volta. A transfiguração materna em ampliados afrescos. Dvořák e o banquete de cordeiros físicos e metafóricos. O Alfa e o Ômega de uma dor íntima. Ao cabo, o encontro com Hölderlin, atingindo o ápex de uma vida dedicada de todo à poesia. Alta voltagem de mistérios e revelações.
Ele preferiu a escola do abismo. Mais que a de Telêmaco. De quem aprende com as impurezas do Hades. E ao voltar, como Orfeu, buscou Eurídice por todos os quadrantes. Mas seus olhos tinham fogo. Sua boca havia sido marcada pela sarça ardente da poesia. Era demasiado tarde para uma crítica da forma pura. E toda uma língua forte — cheia de frescor — com uma férrea vontade de levar a termo uma nova razão de estado da língua de seu país, em que tudo aparece deslocado e destramado. Sua poesia não tem compromissos. E é livre e compartilha um ecumenismo raro na literatura brasileira. E aqui não falo apenas de uma compreensão mística, mas de uma variedade poética e vocabular cheias de eletricidade.
Poeta que canta as belezas do mundo. E suas partes trágicas. Mas com um sorriso de fundo permanente. Sorriso que os trágicos adivinham. Tão nobre se mostra, mesmo quando não tem a intenção de o ser. Tão afetuoso no seio de uma fria injunção. Leve quando combate moinhos rudes e metafísicos.
A Obra Reunida aqui está. Cassas tem agora a imagem do próprio rosto. O itinerarium mentis. As confissões deste Augustinho pós-moderno, maranhense e brasileiro.




                                                            Marco Lucchesi





Marco Americo Lucchesi    (Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1963) é um poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor brasileiro. Membro da Academia Brasileira de Letras (desde 2011) e também da Accademia Lucchese delle Scienze, Lettere e Arti. Graduado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é mestre e doutor em literatura, pela UFRJ, e realizou pesquisa de pós-doutorado em filosofiaa da renascença na Universidade de Colônia, na Alemanha.


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