quarta-feira, 2 de abril de 2014

PEQUENA INTRODUÇÃO AOS MISTÉRIOS DA PAIXÃO E DA COMPAIXÃO



Luís Augusto Cassas


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O amor é a maior experiência mística do ser humano. A lei do amor é a grande síntese do universo. A vida cumpre seus desígnios através do cumprimento da lei do amor. Doamo-nos para descobrir-nos cheios. No vazio, encontramos a plenitude. É vida e morte, beleza e tortura, mel e fel, luz e sombra, fogo e água, céu e terra. Somos demônios e deuses na ascensão e queda no vazio de nossas perplexidades. De mãos vazias, penetramos no templo do desconhecido. Todo ele se dirige à transcendência, ao centro, ao nirvana, à cruz, à realização. É o dever-ser, no qual o ente que somos realiza o valor mais profundo da existência.

Cada vez que alguém ama, repete-se a história da criação do Mundo. Seja dirigido a uma mulher, a uma causa, a um ideal, ao próximo, á vida, a Deus, o amor é a execução da lei cósmica que nos remete ao infinito de nós mesmos, para que possamos concretizar a busca da totalidade. Onde eram dois, se tornam um, para vivenciar uma nova realidade na abrangência da plenitude humana. É a ponte que nos liga ao eterno, desertando as máscaras de nossa impermanência.

O amor é o chicote que nos expulsa do edifício da insinceridade. É a espada violenta que corta o cordão umbilical do nosso egoísmo, transmutado no violino introdutor da nota da esperança na sinfonia da vida. Nele, o destino pacifica-se com o livre-arbítrio, sob as bençãos da providência, para forjar um novo horizonte repleto de significados a serem descobertos e realizados.

Todos os caminhos - ensina a tradição - levam ao amor. Pelo amor se chega à infinita sabedoria. Pela verdadeira sabedoria, desembarca-se no amor. Na árvore da vida, o amor é a verdadeira raiz, embora estejamos quase sempre absorvidos na paisagem. Sem ele, nada seríamos.

São Francisco amava os passarinhos. Kant amava a liberdade e a alma. Freud viu no amor a sublimação do desejo. Victor Frankl vislumbrou no amor a própria essência do ser. Goethe dizia que o homem que não realizou o amor não cumpriu o seu destino. Cristo dizia que devemos amar até os nossos inimigos.

Chega-se ao amor pela busca? Depara-se com o amor, pela não busca? Nasce em nós ou passa por nós? É uma ciência, uma in-ciência, a recompensa do justo salário da vida? É uma grande corrente explosiva que ao romper as comportas do nosso mundo interior, faz-nos rever todos os conceitos que achávamos ridículos? É uma explosão? Um transbordamento?

O amor é o céu? O inferno, portanto, seria a ausência do amor? De que é feito o amor? Quem são seu pai e sua mãe?

Quem é o amor?



2
Liturgia da Paixão
Este livro é uma tentativa de falar do amor. Fala-se do amor, quando se quer vivenciá-lo plenamente ou quando se foi tragado por suas chamas. Só a cinza deve falar do fogo? Não pode a madeira falar da brasa que a quer consumir? Ainda assim, quem o vivenciou, como o explicaria, face a seu caráter de obra aberta, impregnado de multiplicidade? E, explicando-o, como cada um de nós, na pluralidade da apreensão dessa mensagem, o entenderia, sabendo-se de antemão que no significado está sempre embutido o código pessoal de quem o recebe?

Protossíntese do paradoxo, o amor, ao ser analisado, poematizado, verbalizado, raciocinado, tende a perder a sua essência. Pertence, por sua natureza, à coleção dos enigmas do silêncio. Mas calá-lo significaria, também, uma adesão à morte, à sonegação de si mesmo.  Estes poemas, destarte, estão inscritos na categoria do silêncio e da voz e servem de paradoxo das suas notas dissonantes, mas integrativas: a da sonegação e da oferta. Da preservação da sua essência e da profanação da sua fragrância. Esta última, como declarado e sutil objeto de catarse, purificação, redenção.

Preferível é dizer que este livro fala da paixão. Da paixão e compaixão. Qual é o primeiro nome da compaixão? Paixão. Qual o segundo nome da paixão? Compaixão. Fala dos pequenos mistérios da paixão e compaixão de um poeta dividido ( e unido) entre o amor sensual e o amor espiritual, entre a lógica formal e a lógica moral, entre a causa do mundo e a causa de Deus. Dualidade-unidade, a que todos estamos submetidos por um imperativo da criação, que nos modelou Céu e Terra, fazendo os cabelos arranharem as nuvens e os pés presos no barro dos dias. Dirige-se ao amor-fricção que queima e ilumina, e ao amor-irradiação, consubstanciado nas palavras do Mestre:


Então os justos brilharão com o sol no reino do meu pai.
                                                                                                     (Mateus, 13;43)


No caminho da totalidade, o autor percorre estradas não ortodoxas. Não faz opção entre o amor humano e o amor divino. Deus e a mulher. Ele busca a essência de que está impregnado. A penetração nos mistérios para saber dos seus significados. A matéria e o espírito. A paixão e a sua outra face: a compaixão.

Como transcender a dualidade, senão aceitando as duas faces do rosto da vida? Ficar numa polaridade  e renegar a outra face seria combater o próprio amor, princípio da totalidade. Seria render-se à unilateralidade e assumir-se apenas pela metade. Tenta nada julgar, absorvendo as experiências, para que naturalmente sejam feitas a mutação e a comunhão. De que maneira? Permanecendo natural, deixando a vida fluir espontaneamente, conduzindo-o naturalmente à realização. Sabe que é impossível dirigir a vida. Deixa que o amor a dirija. Pode uma gota de água governar o oceano? Um gota de água é apenas uma minúscula gota do oceano da vida. Uma gota de água é apenas uma criança que quer ser  conduzida ao paraíso.



3
A Poesia Sou Eu, vol. 1
Assim como o homem é dividido em corpo e alma, para melhor ser apreciado, o autor pensou em agrupar, inicialmente, por motivos didáticos, o conteúdo poemático do livro em dois blocos: Sábado da Paixão e Domingo da Compaixão, paráfrase ao trânsito roteirial da noite escura de São João da Cruz.  Pelo sábado da paixão penetrar-se-ia no domingo da compaixão. Mas depois percebeu – paradoxo da unidade na diversidade e da diversidade na unidade –  que muitos dos poemas incorporam características binárias dos dois polos. Na via-crucis  humana, o mistério glorioso, às vezes, é preparação para o mistério gozoso.  A Terra cobra o preço do condomínio de existir.  Então, a linearidade foi trocada pela deambulação dirigida ao centro, à cruz, à realização. O amor, no meio, seria a síntese. Será por esta razão que, na arquitetura do corpo, o coração está no meio do tórax, não totalmente no centro, mas um pouco mais à esquerda, indício formal de que a compaixão é a inclinação natural para que a paixão seja transcendida?

O autor busca o seu caminho no amor. Não o caminho oficial das escrituras que opõem o amor humano ao divino. Seu caminho passa pela paixão e quer viver a sua experiência integral, rumo à plenitude desse significado. O caminho do homem comum impregnado do Céu e  da Terra. O Jnãna-Bhatkii do seu céu-terra interior.

Na sua busca tudo se faz sagrado. O profano e o divino, a eternidade e a provisoriedade, o erotismo e o amor-ágape, o prazer e o significado da vida. Ora seus poemas dirigem-se à existência, a Deus, à mulher, à própria poesia, à matéria e à transcendência. Ora mergulham na transmutação do valores do sentimento e do pensamento. Ora investem contra a própria escuridão íntima para devassa-la e extrair-lhe o puro ouro do cascalho.  Tudo serve,  no seu entender, à glória da vida.

Nessa viagem, faz parceria de ideal com a personagem Sidarta, de Herman Hesse, que, convidado por Buda para segui-lo em seu caminho ascético, preferiu viver no mundo a sua solitária experiência interior, pequeno mestre de si mesmo, embora advertido dos perigos e das emboscadas do caminho. 

Sabe que o caminho é cheio de pântanos e pedras.  Sempre existirá uma pedra no meio do caminho. Mas sabe que a busca passa por trevas e pedras para desembocar na luz. Por via das dúvidas ou dúvidas da via, sabe que o caminho da totalidade é mais doloroso e solitário, mas talvez seja a única via – para que nada se perca e tudo seja salvo – do batismo de fogo da sua iluminação.





 Luís Augusto Cassas
In Liturgia da Paixão
In A Poesia Sou Eu, vol. 1, p. 317




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