quinta-feira, 17 de abril de 2014

UM ILUMINADO DISTRIBUIDOR DE POESIA

Luís Augusto Cassas



Bhagavad-Brita (A canção do beco), livro de Luís Augusto Cassas, parece sugerir uma breve pausa em sua obra em curso, um olhar retrospectivo sobre o caminho percorrido. Sintetizando as linhas fundamentais desenvolvidas em sua poesia - a vertente mística e a vertente pop - este talvez seja o mais intimista de seus livros. Desde a estréia, com República dos becos (Civilização Brasileira, 1981), Cassas assumiu a poesia como missão. 
Nos ritmos largos, animada por um extraordinário senso de humor, sua poesia é o avesso do comedimento. O manejo hábil do coloquial é uma clara herança de Drummond e de Bandeira. Todavia, seus compassos de celebração e encantamento, sua astúcia e seu conhecimento da tradição, que trabalha com mestria, são dignos de nota e o distanciam de influências incômodas. “A poesia deve queimar as mãos”, escrevia ele em 1990, dando bem a medida de seu compromisso. 
A poesia social, bastante presente em sua obra, indica outros possíveis parentescos. Se podemos eventualmente aproximá-lo da dicção de Affonso Romano de Sant’Anna, de Moacyr Félix ou de Thiago de Mello, ele pode ser melhor identificado ao lado de Affonso Ávila e de José Paulo Paes que, embora contidos, fazem da poesia social um exercício de fina ironia. Mas Cassas transita entre essas duas linhagens sem contudo se filiar a nenhuma. Sua posição é de admirável independência. 
Com nove livros publicados*, vale registrar que os seus destemperos verbais e um certo gosto pelo exagero às vezes o prejudicam. Contudo, são detalhes que não decompensam a obra. O Cassas do verbo desatado teve sua hora em O retorno da aura (Nórdica, 1994), na sua “caminhada rumo à claridade”. Foi um rito de passagem como o dos “poemas da paixão” que ele reuniu em Liturgia da paixão: opus da compaixão (Nórdica, 1997), quando, inflamado, trabalhava em função da iluminação do verbo. 
A edição simultânea de três livros: Titanic-Boulogne: a canção de Ana e Antônio, O Shopping de Deus & A alma do negócio e Ópera barroca (Imago, 1998), trouxe a perspectiva que faltava para a análise de sua poesia. O Shopping de Deus & A alma do negócio é, ao que parece, o seu livro por excelência, aquele que reúne todas as suas qualidades, seja porque nele alcança a suprema ironia, tão própria de seu espírito, seja pela cristalização de seu lirismo. É uma liturgia pop - que, de certa maneira, resgata o Cassas de Rosebud (Massao Ohno, 1990), livro que não devemos perder de vista em sua produção - mas desta vez com o tempero do visionarismo lírico que nasceu com O retorno da aura. E se Ópera barroca é, sem nenhum menosprezo, um apêndice a O shopping de Deus, Titanic-Bologne é o momento menos feliz, quando o canto não alcança plenamente o tema proposto.
Esse lirismo afeito às asperezas do mundo, que caracteriza a maturidade do poeta, transparece no breve Bhagavad-Brita (A canção do beco). Aí reside o seu mot juste, a forma que lhe deu, neste momento, sustentação à voltagem emocional. Um livro escrito entre a contenção e a reflexão: “nos becos da vida / revela-te sábio: / cigarra e formiga”. É o poeta em sua morada. Indignado e provocador, assaltante e guardião, atento às vozes de Deus e do demônio que habitam a cidade e o homem, ei-lo “agora no chão: / pra entender a matéria / e o seu coração.” A via estreita é o beco, poderoso eco de um mundo de governo e desgoverno no qual ele assume seu canto como um predestinado, um iluminado distribuidor de poesia. Como quem diz: no beco da existência, a céu aberto, caminhar é o caminho. 



André Seffrin 
(crítico e ensaísta)


* 20 livros publicados atualmente


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