sexta-feira, 25 de julho de 2014

O LIVRO DO ÊXODO




     Devorar/ dentes como punhais/ a que nos gestou e pariu/ o corpo branco perfumado de ervas/ assado em brasas e folhas de bananeira/ Devorar em ritos amorosos/ o corpo da mama/ pedaço por pedaço/ reivindicar os seios/ os seios/ os seios/ o direito de primogenitura/ não só pelo prazer de incorporar o poder/ a transmissão da energia/ mas fortalecer o ser/ o ser/ o ser/ e a alegria/

     Devorar vorazmente a carne/ mais que a carne/ o arco-íris da tarde em chamas do corpo de Míriam/ (ouvindo os tambores da ilha)/ banquetear-se do gozo/ gosto/ dos que a amaram/ o sabor que reclama saber/ da matriarca de nossa lã/ nada deixar à terra e às formigas/ sequer o vulto da clara pele de papel-bíblia/ (enqto. os tambores despedem-se da noite da ilha)

     Devorar (como Dvorák devorou as pautas tíbias)/ todo corpo/ horto de Míriam/ na fogueira santa da nossa antropofagia/ daquela que nos engordou para a cerimônia do adeus/ e suas primícias/ Devorando-a/ fomos dev-orados/ descobrindo que nossa fome não era de comida/ mas de amor e vida/ e nos libertamos da carne envenenada/ reiniciando a jornada/ renunciando a luta contra a vida/

      Devorar a que foi a ovelha sacrificial/ p/ expiação dos karmas familiares/ mastigada até o tutano pelos nossos temores/ assada no azeite de nossa angústia corrosiva/ E quando anoiteceu/ anoitecemos/ e quando adoeceu/ fomos curados/ e conduzidos ao cordeiro imolado/ que clama há séculos/ há séculos/ há séculos/ pela ressurreição da carne



A que era/
A que é/
e A que será/
A Shekinah/
invocamo-la/
A testemunhar







Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 496


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