sexta-feira, 9 de maio de 2014

O CORAÇÃO NA MESA

Sagrado Coração de Maria

          A Supermãe.  A Terra Amada. A Árvore da Vida. Antes de tornar-se respeitável senhora, modelo de beleza mais próximo de Rubens que de Modigliani. Não era bom que uma leonina estivesse só. Então a vida fez seu arranjo. Despachou um taurino de encomenda. Míriam e Araújo casaram-se e vieram para São Luis. A Árvore da Vida ensaiou os seus frutos. Cinco vingaram – Augusto, Mariano, Antônio, Míriam e Júnior – pulando galhos, escorregando na folhagem, tombos no chão.

         Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, mamãe estava lá. Tempos de vacas gordas ou magras, estava lá, administrando o rebanho. Reservada. Transitando em seu universo mais velado que explícito. Sacerdotisa da Estrela. A claridade do implícito. Anônima de si. Doando-se a toda família em pensamentos, sentimentos, palavras e obras. A generosidade sem limites. O amor em ação.

         Enquanto o mais tarde desembargador brilhava nos palcos, mamãe, leonina, fazia da casa o seu reino. Papai educava-nos na biblioteca. Ela, mais sedutora, desenvolvia o seu arcabouço pedagógico-gastronômico com incrível poder de fogo. Naturezas vivas da cozinha árabe, italiana, brasileira, maranhense, com seus rituais de intervenção e invenção. Herdamos fundamentalmente a nutrição binária na construção da identidade: saber e sabor.

         Mulher-maravilha. No ginásio me disseram: “Tua mãe é gostosa”. Dei e apanhei, não nessa ordem. Foi minha cúmplice nos primeiros cigarros, no jeito envergonhado de ser, na incapacidade de receber elogios, nos traços fisionômicos e no vício de roer unhas. Após um acidente automobilístico na juventude, dediquei-lhe um poema, driblando a sonoterapia:


D. Míriam e Luís Augusto Cassas

Mãe quando a senhora me embalar
(como fazia quando criança)
peço por favor imploro de joelhos
não seja indiscreta como toda mãe é
Pergunte pelo meu lirismo meu alcoolismo
minhas rusgas e rugas
indague por tudo:
menos pelo hábito de roer unhas
(Isso eu não posso lhe responder)
Pode ser apenas o sentimento antropofágico
a solidão onicofágica
de ver tantas crianças pobres
roerem como bichos detritos de latas de lixo
e minha mãe eu não poder fazer nada
absolutamente nada
Esqueça tudo isso
Fale de brinquedos de cartucheira de cowboy
balanço gangorras e sorvete de chocolate
até de Falsh Gordon e de pudim de macaxeira
Agora peço somente à senhora
Que me embale
Que eu quero dormir...dormir...
E esqueça por favor o resto
Principalmente as minhas unhas
Deixe-as como estão


      
  
            Sabia da necessidade da alegria. Na vida – discordando de Aristóteles – elegia a comédia o gênero mais importante. Equilibrava Marta e Maria. Notória era sua devoção no altar doméstico onde atribulava os santos com pedidos familiares de graças. Escondeu-se dos seus aniversários até a sexta década. Despois gostava de comemorar. Colo grande: criou-me, criou minha  filha Carolina e o meu neto Gabriel. Tornou-se sagrada para nós pela capacidade permanente de sacrifício em favor dos seus.




         Quando viajo, lembro-me dela, a rainha do lar, como num quadro de Roberto Magalhães - o coração na mesa. Era lá na mesa de jantar adaptada e transformada para espetáculo de humor, consultório sentimental, discussões existenciais, confessionário, guerrilhas familiares, pano de buraco e crapô, que ela exercitava seu poderoso arsenal de conhecimento. O amor como alimento. O alimento com amor. Foi lá que eu lhe disse – “Miruca, tô pensando em publicar um livro com suas receitas”-  desconversou, envergonhada.

         Em seu aniversário de 77 anos, julho de 2009, estava feliz. Uma semana depois o terremoto. Placas tectônicas moveram[se bruscamente na profundidade de sua mente, abalando-a e a todos nós. Cuidada pelos seus, submergiu no escuro silêncio do implícito e do inconcluso. Meses depois, Pablo ligou-me de sua casa – “Pai, vovó quer lhe falar!”. O anjo da lembrança acendera-lhe breve spot em meio à tormenta.  – “Augusto, cadê o livro?” .

Na confusão em que nos envolveu a sua doença, as receitas constituídas de material oral não foram organizadas. Mas eu havia escrito um ciclo de poemas sobre ela. A ideia original fora alterada. Mas restou o que de melhor a minha disponibilidade amorosa pôde realizar.

       
  Eis aí o livro, Mãe.

                                                                                                                                                                                                                 L. A. C.













Luís Augusto Cassas
In A Poesia Sou Eu, vol. 2, p. 489



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